Slow Horses: Jackson Lamb é o homem do subsolo Divulgação / Apple TV+

Slow Horses: Jackson Lamb é o homem do subsolo

A televisão e o streaming exploram há duas décadas as novas possibilidades narrativas com as séries. Vem daí as maiores inovações, muito mais do que do cinema. Um traço marcante dessa produção é a substituição dos heróis por protagonistas que habitam as sombras, figuras complexas e moralmente ambíguas. No centro do movimento, descrito por Brett Martin em seu livro “Homens Difíceis”, surgem personagens que desafiam noções de virtude e de comportamento socialmente aceito.

O que se vê nas telas é a sedução dos anti-heróis. Protagonistas masculinos — que vão de Tony Soprano a Walter White — constroem histórias que destacam o fracasso, o desejo de poder e o esgotamento de algumas moralidades básicas. Nessa galeria, o mais novo integrante é Jackson Lamb, de “Slow Horses” (na Apple TV). Olhando bem, damos de cara com um “homem do subsolo” moderno. O sujeito que vive nas ruínas do sistema que o rejeita, mas onde ele ainda encontra alguns propósitos.

Lamb (interpretado magistralmente por Gary Oldman) trabalha no MI5 inglês, o serviço de inteligência do governo para assuntos internos do país. Porém, ele é uma criatura da espionagem da Guerra Fria que está agora no “subsolo”, na Slough House. Trata-se da unidade que reúne agentes descartados. Ele é o chefe do local. Se um agente fez bobagem no trabalho, o destino é aquele quarto de despejo. É lá que reina a figura de Lamb para comandar os “pangarés” (os cavalos lentos, os slow horses).

A ironia da série é contrastar os pangarés a James Bond. Eles não usam trajes elegantes, não desfilam com carros esportivos nem dispõe de arsenal tecnológico. Mas têm Lamb, com humor ácido, desleixo nas roupas, alcoolismo e crises de flatulência. Há desprezo pelas formalidades da espionagem do 007 — esse sim, um assassino frio e superficial. A filosofia de Lamb é sobreviver. Não apenas ocupa o espaço marginal do MI5 que ele já não respeita, mas transforma a marginalidade em resistência.

Lamb não se envolve com o glamour de James Bond. O trabalho é sempre sujo, sem hora para acabar, como é qualquer emprego da globalização. E os pangarés são humilhados e ofendidos dia e noite pelo chefe. Porque, sendo um homem do subsolo, Lamb é a pessoa que se recusa a deixar de pensar. Ele resiste, observa e, com sarcasmo, ri da hipocrisia do serviço que desmorona por dentro. Seu inimigo não são oligarcas russos, mas sim a Central do MI5 que tomou o seu lugar no trabalho de inteligência.

Anti-heróis

Enquanto James Bond representa a fantasia do espião invencível, sedutor e eficiente, Lamb representa a desilusão de salvar o mundo e derrotar vilões. O que vale para ele é a lealdade aos pangarés (“Podem ser burros, incompetentes, mas são meus”, diz). Como um anti-herói que conheceu a glória e a viu desmoronar, ele representa se ajeita ao mundo do trabalho. O homem do subsolo que conhece demais seu habitat e, por isso, se afasta-se do centro do poder para ficar num escritório que é um muquifo.

Slow Horses
Jack Lowden | Divulgação / Apple TV+

Lamb segue uma linhagem de outros personagens de séries contemporâneas que transitam por essas zonas cinzentas, ambíguas e perversas. Walter White (“Breaking Bad”), Tony Soprano (“The Sopranos”) e Frank Underwood (“House of Cards”) ficaram conhecidos e se tornaram, quem diria, idolatrados. Teria havido uma corrosão do caráter do público em geral? Ou são eles que falam as verdades do mundo? O cinismo é uma marca dos tempos modernos? Tudo dá o que pensar.

O ancestral de Lamb é o “homem do subsolo”, de Dostoiévski, que tematizou a figura do anti-herói. Um personagem reflexivo que pensa o tempo e sua condição na modernidade de um país como a Rússia do século 19, em transição de um regime de servidão humana para o capitalismo. Aquele homem sem nome pragueja, diz, desdiz, porém ele não se conforma e não se adapta. Os pangarés parecem se resignar e, ao mesmo tempo, querem dar uma sacudida nas coisas para sair daquele limbo.

“Aqui foram reunidos, de propósito, todos os atributos de um anti-herói, e, o mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estamos desacostumados com a vida, todos nós claudicamos, uns mais, outros menos. E estamos tão desacostumados que, às vezes, sentimos certa repugnância da ‘vida viva’ e, por isso, quando os outros nos lembram dela, nem conseguimos suportar”, escreveu o escritor russo, no livro “Memórias do Subsolo” (1864).

O inconformismo de Lamb, misturado às ironias, é uma forma de negar a situação do trabalho degradante. Essa negação é o olhar corrosivo para o funcionamento do MI5 — um serviço que beira a inutilidade e o nada. Não se espere solução para salvar o mundo ou o mercado de trabalho. Lamb oferece a negatividade, pois é preciso antes conhecer bem como as coisas se contradizem e têm um fundo falso. Nas tramas de “Slow Horses”, há inúmeras pistas falsas e becos em saída. Cai-se frequentemente no nada.

A dificuldade dos homens

Os “homens difíceis” têm seu mártir em Walter White, de “Breaking Bad”. Ele inicia a história como um sujeito comum, numa cidade na fronteira dos Estados Unidos com o México. É professor de química que descobre um câncer terminal. A saída é assumir nova identidade e se tornar o melhor produtor de drogas. O que começa pelo desespero, logo vira um negócio. A moralidade do pacato professor cede ao gozo pelos ganhos obtidos. Mas o preço a pagar está no tráfico fronteiriço — esse sim apavorante.

Slow Horses
Kristin Scott Thomas | Divulgação / Apple TV+

Diferentemente de Lamb, que permanece como espectador irônico em seu subsolo, White busca o domínio absoluto da vida e do dinheiro. O destino se molda à escalada no crime, até que se transfigure num fantasma. Um espectro que ronda a fronteira EUA-México, onde vivem traficantes de seres humanos e ocorrem as maiores atrocidades criminais. A transgressão de White não é a resistência e o inconformismo de Lamb. É a progressiva metamorfose em jogador do capitalismo contemporâneo.

A sedução pela marginalidade faz parte da vide de outro homem difícil. Tony Soprano lida com o pequeno poder de uma máfia fuleira, pequena, de pequenos negócios de bairro. Mas ele começa a vacilar em seu trabalho de uma quadrilha de segunda categoria, nos arredores de Nova York. É um chefe mafioso que se alterna entre o domínio da violência e uma angústia existencial cômica, entre o papel de líder e ataques de pânico. O remédio é fazer terapia com uma psicóloga tradicional.

Difícil imaginar Jackson Lamb tendo ataques de pânico e hesitações na hora de liquidar um oponente. Sua dureza e sua visão irônica têm par com outra figura consagrada das séries, o Frank Underwood, de “House of Cards”. Mas ali vemos a perversão em seu estado da arte. Underwood cultiva a imagem do estrategista frio e calculista, dedicado a alcançar o topo sem qualquer consideração moral. Até aí, nada demais. O segredo de Frank está nos jogos infinitos da política. Revela as obscenidades do poder.  

Lamb pouco ou nada se interessa por ambição ou pelo controle detido por Underwood. O espaço de atuação é a margem, o subsolo, de onde assiste o jogo do poder sem se comprometer em subi-lo. Frank se movimenta pela etiqueta do poder, enquanto Lamb vê no afastamento do centro de decisão a sua liberdade — uma espécie de observador crítico, um outsider que sobrevive sem se render à sedução do topo.

Contra os homens de bem

A graça de Lamb e outros anti-heróis é a contraposição a uma galeria de personagens e séries que louvam “lei e ordem”, “tropas de elite”, “mecanismos”. Parece haver hoje uma sede por figuras que vendem uma correção de rumos para o mundo moderno. Busca-se redenção por meio de “homens de bem”, com discursos fundamentalistas, sobretudo de cunho religioso. Contra essa onda, quem aprecia a arte de contar histórias (romances, filmes, série), deve ler “Em Louvor dos Anti-heróis”, de Victor Brombert.

Brombert sugere que o verdadeiro anti-herói não precisa de redenção, pois se destaca pela aceitação de suas falhas. Lamb é a prova disso. Existe no limite da falência, do fracasso, e transforma essa situação em uma espécie de filosofia, na qual o poder tem pouco sentido e a sobrevivência é o ato resistência até mesmo política. Como Brombert observa, o anti-herói é aquele que, ao expor suas próprias fraquezas, revela algo essencial sobre a vida, a ironia, a brutalidade e a falibilidade das pessoas.

“O homem do subsolo se denigre como que de propósito. Odeia-se a si mesmo até em suas lembranças de infância e escola. Descreve-se em seu roupão esfarrapado, humilhado pelo criador Apolón, e evoca com autodepreciativa satisfação suas humilhações, seus acessos de histeria, suas convulsões. Vê-se a si mesmo como insignificante, asqueroso aos olhos dos outros, e imagina — como diz o ditado russo — que não lhe dão mais atenção do que a uma mosca”, diz Brombert, que poderia estar falando de Lamb.