Toda forma de arte carrega em si fragmentos de vivências humanas. Mesmo obras abstratas são reflexos das experiências de quem as cria, derivadas de emoções, memórias e percepções. No cinema, as narrativas, ainda que delirantes, necessitam de um mínimo de verossimilhança para cativar o público. Da mesma forma, a literatura equilibra-se entre a criação fictícia e o concreto, proporcionando uma conexão espiritual enquanto mantém o leitor enraizado no cotidiano. A criação artística, no entanto, permanece um mistério: talentos extraordinários nem sempre dominam a fórmula da perfeição, enquanto outros, menos destacados, captam e traduzem com maestria a sutileza da vida. A arte, afinal, não é uma ferramenta para corrigir injustiças, mas um espelho multifacetado da existência.
Baseado na obra de Javier Cercas, “O Autor” (2017), dirigido por Manuel Martín Cuenca, mergulha nas angústias e dilemas enfrentados por escritores. A trama acompanha Álvaro, vivido magistralmente por Javier Gutiérrez, cuja atuação lhe rendeu o prêmio Goya de Melhor Ator. Álvaro, um notário frustrado e recém-desempregado, descobre uma habilidade singular: a manipulação. Esse dom o conduz a abandonar sua rotina e buscar reconhecimento literário, mas não sem enfrentar os próprios fracassos e inseguranças.
Álvaro, à deriva após ser demitido por iniciativa própria, também lida com o fim de seu casamento. Sua esposa, Amanda (Maria León), uma escritora de best-sellers, torna-se uma fonte constante de frustração. A traição dela, flagrada em uma noite fatídica, leva Álvaro a mudar-se para um apartamento modesto, cenário que catalisa sua jornada obsessiva pela criação literária.
A partir de sua mudança, Álvaro mergulha em um ambiente peculiar, onde os personagens secundários assumem papéis fundamentais. Lola, a zeladora interpretada por Adelfa Calvo, premiada como Melhor Atriz Coadjuvante no Goya, introduz um humor sombrio à narrativa. Felipe, um veterano protofascista, e os vizinhos mexicanos Irene e Enrique, contribuem para um enredo complexo e multifacetado.
Sob a orientação de Juan (Antonio de la Torre), professor de escrita criativa, Álvaro confronta a própria incapacidade de inventar histórias autênticas. Determinado a seguir o conselho de “escrever com as entranhas”, ele começa a explorar e manipular as vidas de seus vizinhos, transformando seus dramas cotidianos em matéria-prima para seu romance.
O enredo se intensifica à medida que Álvaro cruza limites éticos e legais, explorando seu entorno com uma frieza perturbadora. Sua obsessão culmina em uma série de eventos que levam a um crime, o que coloca todos os moradores do prédio sob suspeita. No entanto, é Álvaro quem acaba preso, uma reviravolta tardia, mas habilmente construída, que remete ao suspense moral de “Quem com Ferro Fere” (2019), de Paco Plaza.
“O Autor” é um estudo fascinante sobre a obsessão criativa e os limites da ambição artística. Cuenca utiliza cada elemento narrativo com precisão, evitando que a abundância de personagens sobrecarregue a trama. A complexidade do roteiro de Cuenca e Alejandro Hernández mantém o público imerso, desafiando percepções sobre o processo criativo e a moralidade.
Escrever, como demonstra o filme, é um ofício que exige não apenas talento, mas uma paciência quase infinita. Em alguns casos, a genialidade reside na persistência. Em outros, na capacidade de extrair significado das sutilezas do cotidiano. “O Autor” exemplifica como até mesmo o ato de manipular realidades pode render uma narrativa potente, reafirmando o poder transformador da literatura e do cinema.
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