Esqueça Pedro Almodóvar, esse é o filme que você precisa ver para apreciar um bom cinema espanhol, na Netflix Divulgação / Netflix

Esqueça Pedro Almodóvar, esse é o filme que você precisa ver para apreciar um bom cinema espanhol, na Netflix

Toda forma de arte carrega em si fragmentos de vivências humanas. Mesmo obras abstratas são reflexos das experiências de quem as cria, derivadas de emoções, memórias e percepções. No cinema, as narrativas, ainda que delirantes, necessitam de um mínimo de verossimilhança para cativar o público. Da mesma forma, a literatura equilibra-se entre a criação fictícia e o concreto, proporcionando uma conexão espiritual enquanto mantém o leitor enraizado no cotidiano. A criação artística, no entanto, permanece um mistério: talentos extraordinários nem sempre dominam a fórmula da perfeição, enquanto outros, menos destacados, captam e traduzem com maestria a sutileza da vida. A arte, afinal, não é uma ferramenta para corrigir injustiças, mas um espelho multifacetado da existência.

Baseado na obra de Javier Cercas, “O Autor” (2017), dirigido por Manuel Martín Cuenca, mergulha nas angústias e dilemas enfrentados por escritores. A trama acompanha Álvaro, vivido magistralmente por Javier Gutiérrez, cuja atuação lhe rendeu o prêmio Goya de Melhor Ator. Álvaro, um notário frustrado e recém-desempregado, descobre uma habilidade singular: a manipulação. Esse dom o conduz a abandonar sua rotina e buscar reconhecimento literário, mas não sem enfrentar os próprios fracassos e inseguranças.

Álvaro, à deriva após ser demitido por iniciativa própria, também lida com o fim de seu casamento. Sua esposa, Amanda (Maria León), uma escritora de best-sellers, torna-se uma fonte constante de frustração. A traição dela, flagrada em uma noite fatídica, leva Álvaro a mudar-se para um apartamento modesto, cenário que catalisa sua jornada obsessiva pela criação literária.

A partir de sua mudança, Álvaro mergulha em um ambiente peculiar, onde os personagens secundários assumem papéis fundamentais. Lola, a zeladora interpretada por Adelfa Calvo, premiada como Melhor Atriz Coadjuvante no Goya, introduz um humor sombrio à narrativa. Felipe, um veterano protofascista, e os vizinhos mexicanos Irene e Enrique, contribuem para um enredo complexo e multifacetado.

Sob a orientação de Juan (Antonio de la Torre), professor de escrita criativa, Álvaro confronta a própria incapacidade de inventar histórias autênticas. Determinado a seguir o conselho de “escrever com as entranhas”, ele começa a explorar e manipular as vidas de seus vizinhos, transformando seus dramas cotidianos em matéria-prima para seu romance.

O enredo se intensifica à medida que Álvaro cruza limites éticos e legais, explorando seu entorno com uma frieza perturbadora. Sua obsessão culmina em uma série de eventos que levam a um crime, o que coloca todos os moradores do prédio sob suspeita. No entanto, é Álvaro quem acaba preso, uma reviravolta tardia, mas habilmente construída, que remete ao suspense moral de “Quem com Ferro Fere” (2019), de Paco Plaza.

“O Autor” é um estudo fascinante sobre a obsessão criativa e os limites da ambição artística. Cuenca utiliza cada elemento narrativo com precisão, evitando que a abundância de personagens sobrecarregue a trama. A complexidade do roteiro de Cuenca e Alejandro Hernández mantém o público imerso, desafiando percepções sobre o processo criativo e a moralidade.

Escrever, como demonstra o filme, é um ofício que exige não apenas talento, mas uma paciência quase infinita. Em alguns casos, a genialidade reside na persistência. Em outros, na capacidade de extrair significado das sutilezas do cotidiano. “O Autor” exemplifica como até mesmo o ato de manipular realidades pode render uma narrativa potente, reafirmando o poder transformador da literatura e do cinema.

Filme: O Autor
Diretor: Manuel Martín Cuenca
Ano: 2017
Gênero: Comédia/Drama/Suspense
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★