O que mais poderia almejar um homem cujas conquistas refletem talento, sucesso e liberdade absoluta para saciar os desejos mais primordiais? A resposta é revelada quando as ilusões cuidadosamente erigidas começam a desmoronar, expondo a fragilidade que até então parecia invencível. Nesse momento, quando tudo que parecia eterno se dissolve, a verdadeira perda emerge, e a vida revela um novo mapa de dores e aprendizados, como ilustrado em “Drive My Car”, de Ryûsuke Hamaguchi.
Esse drama introspectivo explora a jornada de Yûsuke Kafuku, um ator e diretor de teatro que, diante de uma existência marcada por cicatrizes, encontra nas perdas inevitáveis a oportunidade de reavaliar sua relação com o mundo e com ele mesmo. Hamaguchi, adaptando o conto homônimo de Haruki Murakami, mergulha nas profundezas da alma humana, trazendo à tona um equilíbrio frágil entre caos e ordem, moldado por experiências íntimas e universais.
A história é enriquecida por uma camada metalinguística sofisticada, tecida com referências ao teatro clássico, especialmente “Tio Vanya” (1898), de Anton Chekhov. A peça serve como espelho das emoções conflitantes de Kafuku, destacando a tensão entre o desejo de controle e a inevitabilidade da perda. Hidetoshi Nishijima dá vida ao protagonista com uma performance contida, mas profundamente emocional, retratando um homem que busca consolo em sua arte enquanto enfrenta um mundo pessoal desmoronando.
Ao lado de Kafuku está Misaki, interpretada por Tôko Miura, cuja presença silenciosa e serena desafia e reconforta o protagonista. Ela assume o papel de motorista e confidente, uma figura essencial em um momento em que ele lida com a deterioração física e emocional. Misaki, por sua vez, carrega suas próprias sombras, tornando-se um contraponto que enriquece a narrativa com sua busca por redenção e aceitação.
A relação entre Kafuku e sua esposa, Oto, vivida por Reika Kirishima, é apresentada com uma intensidade sutil, pontuada por diálogos carregados de subtexto. Seus momentos juntos, aparentemente mundanos, ganham significado profundo à medida que revelam as camadas de um relacionamento repleto de segredos e silêncios. O roteiro habilmente usa essas interações para preparar o espectador para a ausência de Oto, transformando sua falta em uma presença constante e inquietante.
O filme também reflete sobre a inevitabilidade do envelhecimento e da mortalidade. A condição médica de Kafuku, um glaucoma progressivo, funciona como uma metáfora visual para sua visão gradualmente embaçada da vida e das relações. Esse elemento amplia a dimensão emocional da narrativa, reforçando a luta interna do personagem contra um futuro incerto.
“Drive My Car” é um exemplo primoroso de como a linguagem pode ser um meio de conexão e alienação. A escolha de Kafuku de montar “Tio Vanya” com um elenco multinacional, onde cada ator se expressa em seu idioma nativo, simboliza a complexidade da comunicação humana. As barreiras linguísticas refletem as dificuldades emocionais dos personagens, mas também destacam a universalidade das experiências humanas.
Hamaguchi não se apressa em contar sua história, permitindo que cada cena respire e cada personagem se desenvolva. A cadência do filme, marcada por silêncios e longos planos, captura a essência da introspecção. A direção hábil e o roteiro brilhante criam uma experiência cinematográfica que convida o espectador a contemplar suas próprias jornadas de perda e reencontro.
“Drive My Car” transcende as fronteiras do drama convencional, oferecendo uma exploração profunda e sensível das complexidades da existência humana. É um testemunho do poder do cinema em traduzir os sentimentos mais íntimos em narrativas universais, onde a dor se transforma em uma força motriz para a mudança e a redescoberta.
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