Nas ruas de Istambul, assim como em São Paulo ou Nova York, catadores percorrem incansavelmente as áreas ricas em busca do lixo que para eles é fonte de sobrevivência. Esse trabalho muitas vezes começa cedo, especialmente para aqueles que, órfãos ou desamparados, precisam lutar desde pequenos para garantir o mínimo: comida, uma vestimenta nova quando a antiga já não suporta mais remendos, e às vezes, uma dose do entorpecente mais acessível que os anestesia das dificuldades. “Filhos de Istambul” bebe na mesma fonte que inspirou Charles Dickens em “Oliver Twist”, trazendo para a superfície a problemática do uso de drogas entre personagens que personificam o desespero urbano.
Enquanto Dickens, em sua obra vitoriana, evitava confrontar diretamente a questão das substâncias, a versão moderna apresentada pelo cineasta turco Can Ulkay escancara esse aspecto, refletindo as novas realidades sociais e os desafios do mundo contemporâneo, particularmente os agravados nas últimas duas décadas por políticas econômicas que impõem restrições severas. Embora a Turquia ainda seja vista como um país de economia em crescimento — com um notável aumento de 11% no PIB em 2021 —, a liderança de Recep Tayyip Erdoğan, com suas alianças autoritárias, obscurece as perspectivas futuras.
Despreocupado com as instabilidades políticas e econômicas que agitam seu país, Mehmet, protagonista de “Filhos de Istambul” e interpretado por Çagatay Ulusoy, parece ter saído diretamente das páginas de Dickens para a narrativa criada por Ercan Mehmet Erdem. Como uma versão contemporânea de Fagin, Mehmet lidera um grupo de crianças e jovens que sobrevivem recolhendo detritos nas ruas. Ele os protege, oferece guloseimas, paga o que conseguem reunir e tenta incentivá-los, pois esse foi o caminho que trilhara e que, até então, permitiu-lhe resistir e economizar o suficiente para enfrentar emergências que parecem iminentes. O fiel amigo Gonzi, vivido por Ersin Arici, atua como uma espécie de escudo, livrando Mehmet de problemas com a polícia, que frequentemente o intimida e extorque pequenas quantias.
A narrativa de Ulkay leva o público a uma visita ao hospital, revelando um diagnóstico sério de saúde para o personagem principal. É nesse momento que Ali, um garoto abandonado e interpretado por Emir Ali Dogrul, cruza seu caminho. Resgatado de um saco de lixo e em estado crítico, Ali sobrevive, mas encontra-se sem destino, rejeitado pela mãe, papel de Selen Öztürk. Comovido por lembranças pessoais, Mehmet decide cuidar do menino, consciente de que chamar as autoridades só pioraria a situação. A história se desenrola mostrando que, assim como Mehmet, Ali também sofreu nas mãos de figuras abusivas, fortalecendo a ligação entre eles.
Ulka retrata com precisão a dura rotina dos catadores, destacando cenas que vão desde a disputa por tampas de garrafas de licor usadas em falsificações até a observação de carros luxuosos em trajetos suspeitos entre hotéis e clubes exclusivos. Mehmet é uma presença constante, conectando o universo sombrio dos marginalizados — homens e jovens que compartilham suas tristezas e enganos no Beco das Adversidades — com o mundo cintilante onde o crime e o luxo se entrelaçam. Essa dualidade é um dos pilares do filme, carregada de significados e nuances. A chegada de Ali ao grupo adiciona complexidade à trama: rapidamente integrado pelos demais meninos, ele não demora a cair na armadilha do vício em solventes. Mehmet faz o possível para proteger o garoto, mas fica claro que o domínio impiedoso das ruas, mais cedo ou mais tarde, ameaça derrotá-los.
A presença das crianças de rua nas grandes cidades contemporâneas é uma expressão de problemas sociais intratáveis, provocando sentimentos contraditórios. Elas são um lembrete constante da necessidade de políticas de apoio, educação e cuidado, mas também se tornam um risco, tanto para elas mesmas quanto para os demais, especialmente quando sob o efeito de substâncias químicas inaladas nos becos esquecidos. A narrativa de “Filhos de Istambul” dosa sensibilidade e crítica social, buscando um equilíbrio entre lirismo e realismo, com um desfecho que caminha entre a crueza do real e a alegoria.
Esse toque lembra a obra-prima “Ladrões de Bicicleta”, de Vittorio De Sica, que utiliza a figura infantil para ilustrar a perda da inocência, um evento que marca a desumanização de qualquer sociedade. O retrato de Mehmet por Ulusoy é de um protagonista à beira do colapso, escondendo um transtorno psicológico agravado por um histórico de uso de drogas e uma existência à margem. A espiral de loucura em que ele se encontra, seja por escolha ou circunstância, é o coração da mensagem do filme: uma dança dolorosa entre a esperança e a brutalidade, que transforma a sobrevivência em uma poesia trágica.
★★★★★★★★★★