Aplaudido de pé pelo público e ignorado pela crítica: obra-prima com Anthony Hopkins estreia no Prime Video Divulgação / Sony Pictures Classics

Aplaudido de pé pelo público e ignorado pela crítica: obra-prima com Anthony Hopkins estreia no Prime Video

A Europa passava por dias atribulados naquele setembro de 1939. No primeiro dia do mês, a Alemanha de Hitler invadira a Polônia, rompendo a Segunda Guerra Mundial, que se estenderia pelos seis anos seguintes. Quarenta e oito horas mais tarde, a Inglaterra também juntou-se às fileiras dos Aliados, e de súbito, 22.597.000 almas viram-se obrigadas a se acostumar a uma rotina de abrigos antiaéreos, máscaras de gás, paranoia, caos, terror. Já consagrado por seus estudos sobre o poder do inconsciente e resistindo ao câncer de laringe que o mataria três semanas depois, o médico austríaco Sigmund Freud (1856-1939) era uma dessas pessoas, e por paradoxal que soe, não se deixava abalar, até receber uma visita meio indesejável. 

“A Última Sessão de Freud” engana, uma vez que aquele não se tratava de um encontro profissional, mas de um acerto de contas entre dois homens voluntariosos, admirados em suas áreas e, o mais importante, com visões muito distintas acerca de Deus, fé, transcendência e alma — ou a falta deles. A adaptação do diretor Matthew Brown e do corroteirista Mark St. Germain para a peça homônima deste, levada aos palcos em 2009, ressalta o inusitado do tal convescote (que pode nem ter ocorrido), centrando em C.S. Lewis (1898-1963) o oponente à altura da suposta autossuficiência de Freud.

Freud tem virado carne de vaca, e atingida certa idade, todo ator branco e grisalho deixa crescer o célebre cavanhaque para viver o Golden Siggie. Só Anthony Hopkins, contudo, parece ter estofo intelectual e substância dramática para dar vida a uma das personalidades mais cheias de meandros da História, alvo crescente de polêmicas artificiais de uns tempos para cá, quase sempre ligadas ao politicamente correto, ao identitarismo e à perigosa militância woke.

 Hopkins elabora à perfeição o desalento cínico de Freud, o temperamento como o de um velho guerreiro que já travou todos os bons e maus combates que podia e vai-se convertendo numa criança birrenta, que não se furta a dizer verdades mesmo que não lhas solicitem. St. Germain e Brown levam o filme para a crônica de costumes ao passo que reservam momentos para registrar o avanço do Eixo e seus mais de 28 mil bombardeios a Londres entre 7 de outubro de 1940 e 6 de junho de 1941. Na semana em que Freud e Lewis se conhecem, tombam cerca de vinte mil corpos em menos de 24 horas, e, por óbvio, essa tensão permeia as conversas dos dois. 

Brown garante o equilíbrio da narrativa ao ir se deslocando do ateu convicto e praticante, para seu interlocutor, um fervoroso cristão convertido que, como ele, deixara sua Belfast natal por razões políticas superiores à vontade de lutar. Lewis, o futuro autor de “As Crônicas de Nárnia” (1950-1956), era um sujeito lhano, mas que sabia muito bem subir o tom do discurso quando necessário, e Matthew Goode imprime a seu personagem a justa medida de repúdio às heresias do velho, uma pletora de contradições por trás de nuvens de fumaça de charuto, capaz de manifestar seu desprezo solene a quase todas as instituições, mas alisar a foto de Sophie, a filha morta 27 anos na pandemia de gripe espanhola em 1920, uma prova para Freud de que Deus era mesmo um sádico tirano, ou um sonho dentro de um sonho, título do famoso poema, um dos derradeiros de Edgar Allan Poe (1809-1849). A maior qualidade de “A Última Sessão de Freud” é precisamente essa: transformar assuntos tão espinhosos primeiro em algo tangível a qualquer um, e daí esperar até que a poesia decante. 

Filme: A Última Sessão de Freud
Diretor: Matthew Brown
Ano: 2023
Gênero: Drama
Avaliaçao: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★