Ainda estamos aqui? Divulgação / Alile Dara Onawale

 Ainda estamos aqui?

Se eu não admitisse o erro de ter apostado no azarão, estaria condenando a corrida e a aposta, e aí sim nada do que fiz e os meus livros (ou minha vida, tanto faz) correriam o risco de desaparecer na inutilidade e na insignificância. Não é o caso, apesar do meu cavalo ter chegado em último lugar, e de eu ter perdido a aposta para os meus piores demônios, apesar de tudo não me omiti: “ainda estou aqui”?

Saí do cinema com uma sensação de desperdício, e uma vertigem misturada com um travo de amargura, como se compartilhasse as perdas com a família Rubens Paiva. Uma vez que sou o que sou (ou o que fui) porque assumi um lado e desde sempre acreditei/comprei a ideia que a primeira parte do filme vendeu. Uma ideia, que virou um ideal, e descambou para uma merda de ideologia (mas essa é outra história, problema meu).

Vale que foi essa ideia me trouxe até aqui. O meu lugar no mundo. Resumida e grosseiramente, posso chamar o “engano” de minha formação moral e estética que, um dia, foi dividida com os meus ídolos mais caros (os mesmos que estavam pregados em cartazes no “quarto das crianças”) e, claro, neste pacote, também entraria a liberdade que adquiri às custas de muitas negativas, tesão e trabalho, porque eu me incluí, enfim, porque fui desperdiçado em favor de uma concepção de mundo (e um mundo) que não só escoou pelo ralo, mas que foi sequestrado politicamente por uma ideia que, hoje, vejo e constato que não passou de uma ilusão, ou seja, foi com a sensação de ser enganado e de fracasso retumbante que saí do cinema depois de assistir “Ainda Estou Aqui”.

Como se as atrocidades cometidas contra “os meus”, além de décadas de sacrifício e do talento de gerações que foram desperdiçadas/arrebentadas, todo o passado perdido e o futuro incerto, como se a esperança de redenção e a síntese de tudo o que acreditei fossem depositadas nas pessoas e nos lugares errados. Apesar disso, ainda consegui conservar uma certa identidade e discernimento. O que perdi foi só minha inocência.

A família de Eunice Paiva aparentemente havia perdido tudo. E é neste ponto que reside a alma do filme: na família Paiva, e nas famílias brasileiras que existiram numa época remota de um país remoto que, hoje, só poderiam mesmo ser materializados na nostalgia e na ficção. O diretor conseguiu capturar um intervalo de felicidade irreproduzível e impossível de se conjecturar nos dias atuais, e é isso que encanta no filme, e o que dói mais.

“Ainda Estou Aqui” é sobre a interrupção do sonho de uma família que vivia um conto de fadas tropical, cujo pai era o provedor sem os ranços do machismo e da autoridade características da espécie, um homem encantador, sensível, boa praça, amigo da mulher e das filhas adoráveis, incluo o filho como se fosse uma filha também, pois estamos falando de um lar eminentemente feminino e delicado, de modo que seria até uma heresia dizer que a mãe era submissa: naquela casa, a única submissão plausível a ser considerada era a submissão à felicidade. E a plateia, sobretudo os mais velhos que experimentaram aqueles dias, sente-se muito a vontade para entrar na casa de praia dos Paiva, e mergulhar sem pudor no mar do Leblon, tendo ao fundo um Vidigal quase virgem: imagina-se dividindo as receitas de bolo com Eunice, dançando ao som de Juca Chaves, ah, que delícia, “Take me back to Piauí” (essa cena especialmente me derrubou), afinal era só atravessar a rua e correr na direção da felicidade como se nada estivesse acontecendo (hoje não temos nem essa opção) e se lambuzar da memória afetiva de chicabons, das peladas de rua, da delícia que era viver livre da dependência dos celulares e sem o rabo preso com a tecnologia; o filme, baseado no livro homônimo do Marcelo, é uma brincadeira de pique-esconde que deu ruim. O que eu quero dizer é que não tem como não se identificar e sentir-se parte da família Paiva: eis o truque do cinema, que faz a plateia pertencer a um mundo que não devia ter acabado, mas que ruiu e foi substituído por uma realidade violenta, brutal e injustificável, especialmente para Eunice e seus filhos.

Vale dizer, a partir do sumiço do pai, a família é expulsa do paraíso/Brasil anos 70, e é projetada no futuro, que é a nossa realidade, o aqui e o agora, como se os Paiva antecipassem um país que estava condenado ao sumiço, daí a sensação de derrota ao sair da sala de cinema, desperdício, violência, engano e frustração e, claro, desaparecimento. Ainda estamos aqui?