Tão belo quanto devastador: o filme mais bonito da Netflix — que não apenas emociona, mas se torna parte de você Benjamin Loeb / Netflix

Tão belo quanto devastador: o filme mais bonito da Netflix — que não apenas emociona, mas se torna parte de você

O filme “Pieces of a Woman”, que marca a primeira produção em inglês do diretor Kornél Mundruczó, é uma obra que desafia a percepção do espectador logo de início com um plano-sequência orquestrado com precisão impressionante. As palavras disparadas no diálogo carregam um peso dramático calculado — nenhuma expressão está ali sem propósito. Nos primeiros 25 minutos, a narrativa constrói uma atmosfera densa e inevitável, colocando o público em contato direto com os momentos mais intensos e marcantes da vida de um casal, acompanhados por outra mulher em cena.

A escolha pelo plano-sequência, recurso que faz com que o observador se sinta imerso no evento, remete às produções notáveis dos anos 1970 e 1980. Exemplos disso são “Uma Mulher sob Influência”, de John Cassavetes, e “Hannah e Suas Irmãs”, de Woody Allen. Nesses filmes, a sensação é de ser puxado para dentro de uma espiral emocional, onde a aparente simplicidade do enredo esconde uma força magnética que prende o público.

O filme acompanha a jornada de Martha Weiss, interpretada com notável entrega por Vanessa Kirby, e seu marido, Sean, vivido por Shia LaBeouf. O que deveria ser o ápice de felicidade do casal rapidamente se transforma em um pesadelo. O nascimento da filha, Yvette, ocorre em casa, sob os cuidados da parteira Eva, papel de Molly Parker, que substitui a obstetra impedida de comparecer. No decorrer de uma sequência angustiante que percorre os cômodos da casa — sala, quarto e banheiro —, o trio expressa uma cacofonia de palavras e emoções, especialmente Martha, cuja dor intensa guia a cena.

Ela elogia Sean, o que revela uma vulnerabilidade profunda enquanto ela atravessa um momento de intensidade visceral, questiona o que virá a seguir e solta gritos de sofrimento. A cada minuto, as contrações se tornam mais frequentes, culminando no rompimento da bolsa e no parto apressado. No entanto, a tensão aumenta quando Eva percebe algo errado. A bebê nasce sem sinais vitais, e com ela, a estrutura emocional da família começa a ruir, levando Martha e Sean a um caminho de dor e distanciamento.

A história se adensa com a presença de Elizabeth, a mãe de Martha, interpretada pela veterana Ellen Burstyn. Marcada por uma história de sobrevivência ao Holocausto, Elizabeth é uma figura que impõe rigor e julgamentos implacáveis. O fracasso do parto logo se transforma em uma sombra sobre Martha, com a mãe insinuando, ainda que de forma velada, que a responsabilidade recai sobre a filha. O relacionamento entre as duas, já frágil, se revela cheio de tensões não resolvidas. Uma cena particularmente emblemática ocorre no cemitério, quando a família discute a grafia do nome de Yvette na lápide. Sean, exausto, cede à pressão, mas Elizabeth aproveita a oportunidade para afirmar seu domínio, apoiando o genro e ampliando o clima de conflito.

Momentos posteriores trazem Martha em um jantar na casa de Elizabeth, junto à sua irmã Anita e outros parentes. Nesse ambiente, a mãe não hesita em sugerir que pagaria para que Sean se afastasse da filha, uma medida que, embora drástica, parece plausível naquele contexto. A deterioração do relacionamento entre Sean e Martha se intensifica quando ele se aproxima de Suzanne, a prima advogada de Martha, interpretada por Sarah Snook. A dinâmica entre eles evolui para uma traição emocional, culminando em um momento de vulnerabilidade de Sean em um dos encontros familiares. Martha, em meio a esse turbilhão, perde a conexão consigo mesma, apresentando uma versão de si quase etérea, uma figura que vaga entre o mundo material e o desespero silencioso, expressando um anseio por retornar ao que era antes.

A metáfora da maçã, que perpassa a narrativa, serve como um poderoso símbolo que evoca desejo, conhecimento e renovação. Martha, ao cultivar sementes dessa fruta, inicia um processo de transformação que carrega significados bíblicos. Seu ato de plantar e nutrir simboliza sua luta por reconstrução e entendimento, um reflexo de Eva, a figura arquetípica que experimenta a perda e renascimento. No clímax, a protagonista se ergue das cinzas de sua dor, encontrando um novo propósito. O filme finaliza com uma cena que sela a jornada de Martha, destacando sua capacidade de enfrentar o sofrimento e, de alguma forma, encontrar resiliência.

“Pieces of a Woman” oferece um retrato multifacetado da fragilidade humana e do poder de superação. O diretor explora a profundidade emocional de seus personagens, construindo uma narrativa que desafia o público a encarar a complexidade do luto, da culpa e da busca por significado. Vanessa Kirby entrega uma performance que transcende a tela, mostrando uma personagem que, em sua jornada de dor, encontra forças para renascer. A história de Martha é um lembrete das cicatrizes invisíveis que moldam nossa existência e da promessa de renascimento que, mesmo em meio ao sofrimento, pode surgir.

Filme: Pieces of a Woman
Diretor: Kornél Mundruczó
Ano: 2020
Gênero: Drama
Avaliaçao: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★