No século XVIII, a culinária assumia papéis distintos de acordo com a classe social na França. Para a nobreza, era um símbolo de status e um antídoto contra o tédio; já para o povo comum, a comida era uma questão de sobrevivência. Hospedarias e estalagens ofereciam refeições simples aos viajantes, e a prática de comer fora era praticamente inexistente. Com o passar do tempo, os restaurantes começaram a surgir e ganhar espaço como pontos de encontro e experimentação. Essa introdução, presente no prólogo de “Delicioso: Da Cozinha para o Mundo”, nos leva a uma viagem histórica que remonta a mais de dois séculos para mostrar o início de uma instituição genuinamente francesa. Elementos políticos e mudanças nos costumes foram decisivos para que as casas de pasto florescessem no epicentro da Europa iluminista.
O costume de fazer refeições fora de casa, em ambientes que não incluíam a companhia de parentes e conhecidos, só foi adotado após a Revolução Francesa (1789-1799). Foi nesse período que a burguesia ascendeu e passou a sustentar a economia do país, enquanto os provincianos se deslocavam para Paris em busca de uma experiência gastronômica mais sofisticada. O filme dirigido por Éric Besnard traz uma releitura sobre como o primeiro restaurante surgiu, não pelas mãos desajeitadas de Boulanger, um vendedor de caldos restauradores que oferecia sopas insípidas para aliviar problemas digestivos — origem do termo “restaurante” —, mas sim por Pierre Manceron, um personagem fictício que encarna Mathurin Roze de Chantoiseau (1730-1806), reconhecido como o pioneiro ao inaugurar o primeiro estabelecimento desse tipo em 1766. Besnard, junto ao co-roteirista Nicolas Boukhrief, enriquece a obra com referências históricas autênticas, explorando a relação de Manceron com uma mulher enigmática que impacta sua trajetória pessoal e profissional.
Nos dias que antecedem a Revolução, Manceron está à frente do banquete do duque de Chamfort, uma celebração que talvez simbolize o último suspiro da aristocracia francesa no seu auge de ostentação. Em um ato de ousadia, o chef serve um petisco composto por trufas, batatas, ovos e farinha, que batiza de “delicioso”. Embora o duque não esconda sua aprovação, o prato desencadeia a ira de seus convidados, com destaque para o bispo, que reage de forma intensa. A trama evolui com um jogo cênico primorosamente conduzido por Grégory Gadebois e Benjamin Lavernhe, onde o caos inicial resulta na expulsão de Manceron. Ele se refugia em um casebre rural, vivendo com seu filho Benjamin, interpretado por Christian Bouillette, e administrando um armazém. A rotina é solitária e marcada pela preparação de uma sopa rala para os poucos viajantes que aparecem, até a chegada de Louise, uma forasteira que exige ser contratada como ajudante de cozinha. Isabelle Carré brilha na pele dessa mulher enigmática que, sem fazer alarde, redefine o destino do chef, marcado pela desgraça ao ousar ultrapassar os limites impostos pelo seu patrão.
A chegada de Louise modifica a narrativa, embora sua presença seja fundamental em diversos pontos para justificar o tema principal, algo que se mostra como uma referência notável para Tran Anh Hung em “O Sabor da Vida” (2023). Contudo, o que realmente destaca “Delicioso: Da Cozinha para o Mundo” é a série de histórias ricas sobre a origem da gastronomia. O filme convida os mais atentos a refletirem sobre o ato revolucionário de saborear uma refeição fora de casa, aproveitando os prazeres da mesa sem a obrigação de cuidar da limpeza depois, a menos que se esqueçam da carteira ou do celular.
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