O Sobrinho de Wittgenstein, de Thomas Bernhard: a estética da repetição e os labirintos da existência

O Sobrinho de Wittgenstein, de Thomas Bernhard: a estética da repetição e os labirintos da existência

A literatura e a filosofia sempre foram irmãs em sua busca pela verdade e pelo entendimento do ser humano. Ambas pretendem explorar e questionar a condição humana, as complexidades da existência e as experiências que nos moldam. A literatura oferece narrativas ricas e complexas, capazes de delinear sentimentos, sensações e realidades que, muitas vezes, a filosofia encara de forma abstrata e conceitual.

Quando pensamos nos diálogos entre essas duas disciplinas, percebemos como a literatura pode ser um veículo para as ideias filosóficas, permitindo que conceitos sejam não apenas discutidos, mas vividos. Ao lado disso, a filosofia pode iluminar as camadas mais profundas da narrativa literária, fornecendo um referencial que ajuda a decifrar os dilemas existenciais e morais apresentados pelos autores.

No romance “O Sobrinho de Wittgenstein”, Thomas Bernhard cria um espaço em que essas relações se tornam palpáveis. O texto não apenas convoca a reflexão filosófica, mas também se configura como uma crítica à própria natureza da filosofia, ao examinar a vida e as ideias de Ludwig Wittgenstein através dos olhos de seu sobrinho. Aqui, a literatura se torna um reflexo das inquietações filosóficas, permitindo que o leitor mergulhe em uma meditação sobre a linguagem, o sentido e a condição humana.

O Sobrinho De Wittgenstein
O Sobrinho de Wittgenstein, de Thomas Bernhard (Assirio & Alvim, 136 páginas, tradução de Jose A. Palma Caetano)

Na intersecção entre a filosofia e a fragilidade da condição humana, “O Sobrinho de Wittgenstein” se revela como uma obra rica em nuances autobiográficas e tangida pela melancolia. O protagonista, que nos guia por uma série de experiências compartilhadas com Paul Wittgenstein, sobrinho do famoso filósofo, nos apresenta um cenário que flutua entre a ironia e a reflexão. Ambos, à beira da precipitação emocional e existencial, encontram-se em um hospital em Viena, separados por patologias — um lutando contra as tempestades pulmonares que inevitavelmente o assombram, o outro travando batalhas internas mais sombrias, em uma unidade de psiquiatria. Este encontro, por si só, é um microcosmo da complexidade da amizade e da arte de dialogar com a própria dor.

O fio condutor desta narrativa não é apenas a amizade, mas sim o embate incessante entre a genialidade e a queda. Paul, cujo gênio musical não encontra tradução em uma vida ordenada, desliza nas ondas da riqueza e da ruína, do encantamento e da desilusão. Cada conversa entre os dois amigos está impregnada de um profundo senso de ironia, uma crítica mordaz ao mundo que os cerca — um mundo em que as palavras são armas e alívios, mas também armadilhas que podem aprisionar tanto quanto libertar. O brilhante Paul, que um dia flertou com a opulência de uma das mais abastadas famílias da Áustria, afunda na miséria e na decadência, um contraste fascinante para a mente que respirava arte e inspirações em cada gesto.

Ao longo das páginas, o leitor é conduzido por uma dança de reflexões, onde o humor sarcástico e as observações agudas servem de alicerce para uma conversa filosófica mais ampla. O sobrinho do filósofo Wittgenstein transita pelas sombras do absurdo e da tragédia, fazendo-nos questionar o que realmente importa na relação humana, na arte e na própria essência do ser. Essa criação literária se transforma em um eco suave das vozes de seus protagonistas, recheada de momentos jocosos, decadentes e provocadores, alinhavados por uma sensibilidade que captura a essência do espírito humano em toda a sua complexidade e fragilidade.

Ludwig Wittgenstein, figura seminal da filosofia do século 20, nasceu em um ambiente que harmonizava a riqueza cultural e a grandeza do pensamento europeu. Sua essência inquieta e curiosa sempre o levou à pista de questionamentos fundamentais, que se cristalizariam em sua obra-prima, “Tractatus Logico-Philosophicus”.

Escrito durante os difíceis anos das guerras europeias, essa obra é a síntese de uma mente que se atreveu a adentrar os mistérios entre linguagem e realidade. No “Tractatus”, Wittgenstein oferece uma construção lógica que, ao mesmo tempo, transita entre a rigorosidade matemática e a leveza poética. Cada proposição é uma pedra angular que sustenta sua busca pela clareza e pela precisão do pensamento. As frases, curtas e incisivas, revelam a beleza austera que permeia todo o trabalho: uma interação complexa entre o mundo que percebemos e a linguagem que utilizamos para descrevê-lo.

O filósofo não se limita a rasgar a cortina da confusão. Ele nos convida a movimentos delicados entre significados, sugerindo que muitos dos problemas filosóficos não passam de embaraços decorrentes de imprecisões linguísticas. Isso é extremamente sedutor; ao afirmar que a estrutura da nossa linguagem é refletida na estrutura do mundo, Wittgenstein nos faz repensar como nos comunicamos, como pensamos e, em última análise, como existimos. Seu famoso aforismo, “onde falamos, devemos manter silêncio”, não é mero véu de conclusão, mas um convite provocativo à introspecção, desafiando-nos a questionar não apenas o que dizemos, mas, sobretudo, o que deixamos não dito.

A obra-prima de Wittgenstein se firma não apenas como um tratado filosófico, mas como uma peça de arte, cuja beleza reside na conjugação de forma e conteúdo, pensamento e linguagem. E, em cada página, um desafio à reflexão persiste, seduzindo-nos a mergulhar mais fundo nos labirintos da lógica e da expressão.

A interseção da filosofia de Wittgenstein e a prosa incisiva de Bernhard é um universo fecundo para a reflexão sobre a condição humana e suas complexidades. Wittgenstein lança dúvidas sobre a capacidade da linguagem em capturar a essência do mundo. Bernhard, por sua vez, evoca um ambiente de desespero cômico onde as palavras muitas vezes falham em traduzir a profundidade do existir, como quando ele diz: “A vida é um espetáculo sem espectadores”, desafiando, assim, a noção de presença e significado que Wittgenstein tão rigorosamente explora.

O quadro da existência que Bernhard pinta é sombrio, mas não sem traços de ironia. Ele propõe uma crítica feroz à sociedade e à arte, ecoando informação intrinsecamente wittgensteiniana que considera a linguagem não apenas um veículo de comunicação, mas também um campo de batalha onde a verdade é frequentemente derrotada. A frase de Bernhard, “Aqui, tudo é uma cela”, ressoa como um eco do sentimento wittgensteiniano sobre as limitações do que se pode expressar, trazendo à tona a essência do aprisionamento que a linguagem pode nos infligir.

A complexidade dos diálogos internos dos personagens de Bernhard pode ser vista através da lente da ideia wittgensteiniana da ausência de sentido em proposições que falham em se conectar com o mundo. A repetição incessante, técnica do estilo de Bernhard que não pode ser compreendida sem o conhecimento da filosofia de Wittgenstein, parece muitas vezes absurda, e é reflexo das situações linguísticas com as quais o filósofo sempre se ocupou. A repetição, em Bernhard, reflete a noção de que “o que pode ser dito pode ser dito claramente”, mas o que se esconde entre as palavras muitas vezes permanece nebuloso, capturando a frustração que o filósofo tão eloquentemente expressa. Essa tensão entre o que é dito e o que é implícito dá vida a discussões apaixonadas entre críticos.

Bernhard trata a vida como uma repetição de erros e, de forma invertida, coloca luz sob o caráter divertido do desalento. Isso ressoa com a ideia de Wittgenstein de que a linguagem muitas vezes se destrói por sua própria rigidez, sendo desenhada para descrever um mundo que não se conforma facilmente a tais descrições. O ato de escrever de Bernhard, na verdade, é um convite à libertação das amarras do discurso convencional, um desejo expresso em frases como “escrever é a única liberdade”.

O humor mordaz de Bernhard, que surge em meio ao desespero, reflete a resistência à conformidade, semelhante à crítica wittgensteiniana aos excessos da filosofia. Ambos pregam um retorno à simplicidade, embora Bernhard o faça por meio da provocação e do absurdo. A sua obra é como um palheiro onde se busca a agulha da verdade, e seu personagem, como um protagonista em uma comédia de erros, lamenta: “O riso é a melhor forma de esbarrar na verdade”. Essencialmente, ele se torna um demiurgo de um mundo em que as palavras não apenas falham, mas também riem do próprio ato de falhar.

Esse “teatro do absurdo” que Bernhard estabelece é comparável à proposta de Wittgenstein sobre o “jogo de linguagem”, onde o significado é moldado por contextos e práticas sociais. Ao afirmar que “as palavras estão lá para serem utilizadas”, Wittgenstein aponta para a necessidade de um uso contextualmente relevante da linguagem, que Bernhard exemplifica ao retratar personagens presos em diálogos que os distanciam da real compreensão, levando a reflexões irônicas e existenciais.

As interações e confrontos entre seus personagens superam as barreiras do diálogo comum; se em Wittgenstein “o que podemos dizer claramente, podemos dizer claramente”, em Bernhard, “o que realmente importa nunca pode ser dito por inteiro” é o mantra que ressoa. A infelicidade, a crítica à vida cotidiana e a busca pela essência invisível entre as tramas da linguagem são motores de suas narrativas. Sua prosa é, às vezes, uma forma de escândalo, como se brincasse com as normas do que tradicionalmente se considera literatura.

Na atmosfera do romance, encontramos personagens que se debatem contra suas próprias verdades. O significado parece escorregar entre os dedos, evidenciando o que o filósofo chamaria de “jogos de linguagem”. Este conceito é uma espécie de metafilosofia, onde o ato de falar e o conteúdo do discurso estão sempre em transição.

A estrutura narrativa de Bernhard é um reflexo do emaranhado de ideias de Wittgenstein. Em uma cena crucial, o sobrinho, em meio a seus devaneios, afirma: “falar é uma arte triste, onde a clareza é um mero acaso”. Essa frase encapsula o dilema existencial que permeia o romance, sugerindo que a busca pela clareza é em si uma forma de negação da complexidade da vida e das relações humanas. Wittgenstein, em suas próprias palavras, talvez diria que “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”.

A composição do espaço em “O Sobrinho de Wittgenstein” também é especial, onde as paisagens austríacas servem como pano de fundo para um conflito interno profundo. A sensação de claustrofobia e opressão na escrita de Bernhard ecoa a ideia de que estamos aprisionados pelas palavras e seus significados.

A atmosfera opressiva e sombria que permeia a obra de Bernhard serve como um espelho para as inquietações filosóficas de Wittgenstein, criando um espaço onde o desespero coexiste com a comédia, e a banalidade do cotidiano é apresentada de forma crítica. Essa dualidade não só enfatiza a complexidade das interações humanas, mas também sublinha a ideia de que a busca pela verdade é um processo repleto de ironias, onde a risada pode, paradoxalmente, ser a única forma de encontrar um alívio em meio ao fardo existencial.

A interação entre Wittgenstein e Bernhard nos impele a reconsiderar nossa própria relação com a linguagem e o sentido. Através da junção de suas vozes, somos lembrados de que a busca pela verdade é muitas vezes uma jornada labiríntica, onde o inseguro e o obscuro são companheiros constantes, e o entendimento reside não no que é dito, mas nas lacunas deixadas pelo que permanece silenciado.