Muita coisa já mudou, mas Hollywood continua a ser feita de astros que sublimam pequenezas como vida pessoal, aspirações secretas, desejos inconfessáveis para que o show não pare. Frances Ethel Gumm (1922-1969) foi uma dessas divas mundanas dos primórdios do showbiz, ainda que tenha passado 47 anos de uma vida fugaz e atribulada cedendo os louros a Judy Garland. Rupert Goold faz um recorte preciso do frenesi e da melancolia de Garland ao longo de seu último ano na Terra em “Judy: Muito Além do Arco-Íris”, escapando da hagiografia ao mostrar quase todas as fraquezas de sua biografada sob ângulos nada lisonjeiros, porém respeitosos. Baseado na peça “End of the Rainbow” (“fim do arco-íris”, em tradução literal; 2005), do inglês Peter Quilter, o roteiro de Tom Edge mira Garland e termina por acertar também Édith Piaf (1915-1963), Carmen Miranda (1909-1955) e tantas outras mulheres admiráveis, cujo talento não observava fronteiras. Mas por que elas têm de sofrer tanto?
“Judy” vai e volta nos flashbacks da protagonista quando ainda era uma promessa da MGM, bancada por ninguém menos que Louis B. Mayer (1884-1957), dono do estúdio e um dos homens mais poderosos do cinema. Na pele da jovem Judy, Darci Shaw aparece na estrada de tijolos amarelos de “O Mágico de Oz” (1939), o clássico dirigido por Victor Fleming (1889-1949), e pula para um futuro nada glorioso, voltando com os filhos mais novos, Lorna e Joe, de uma apresentação num inferninho qualquer de Los Angeles durante a madrugada. Como a diária já tivesse vencido e o gerente não vira a cor do dinheiro, os três saem pela noite à cata de pouso e batem à porta do pai das crianças, Sidney Luft (1915-2005). Lorna e Joe ficam, e Judy segue para uma festa em Beverly Hills.
Goold acha um modo engenhoso de sintetizar os eventos mais importantes do filme nesse ambiente, um palacete por onde circulam as beldades da América hype, entre elas Liza Minnelli, que dispensa apresentações, e Mickey Deans (1934-2003). Essa é decerto a sequência mais refrescante do longa, e o encontro de mãe e filha, duas garotas que só querem se divertir, suaviza temporariamente a carga trágica da narrativa. Quanto a Deans, um empresário da noite de Nova York com quem Garland amanhece na tal mansão, basta dizer que ele se tornaria seu quinto marido e o catalisador de um processo autodestrutivo iniciado quando da convivência da artista com Mayer, sobre quem o diretor reaviva um possível abuso contra sua estrela mirim, sem aprofundar-se na polêmica.
Nem tudo naquela festa havia sido apenas o prenúncio da debacle da eterna menina-prodígio, contudo. Saindo dali, ela é convidada a levar uma turnê em Londres, e apesar de uma relutância inicial, acaba cedendo. “Judy” tem o vigor dos grandes musicais da Era de Ouro, a exemplo de “Sinfonia de Paris” (1951), de Vincente Minnelli (1903-1986), o primeiro cônjuge de Garland e pai de Liza; “Cantando na Chuva” (1952), de Stanley Donen (1924-2019) e Gene Kelly (1912-1996); ou o próprio “O Mágico de Oz”, apesar da composição afetada de Renée Zellweger e seus notórios esgares.
Obstáculos dessa monta poderiam ser inexpugnáveis nas mãos inabilidosas, mas Goold vale-se de planos abertos da plateia e da banda para disfarçar as imperfeições técnicas de Zellweger, incapaz de sincronizar a cadência da música com o movimento dos lábios. De referência fashion, bastião da causa gay — epígrafe que talvez fosse-lhe meio indigesta, dada a lembrança de Minnelli… —, arquétipo da operária dos palcos, profissional até o osso, e símbolo feminista por precisão, não por boniteza, Judy Garland está quase toda neste filme tão inspirado quanto inspirador, lembrando-nos que um sonho às vezes custa caro demais. Aqui ou muito além do arco-íris.
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