Zoe Kravitz faz sua estreia magistral como diretora e roteirista com a comédia sombria “Pisque Duas Vezes”, lançado em 2024. Com roteiro desenvolvido em parceria com ET Feigenbaum, o filme começou a ser pensado por volta de 2017, ainda antes do movimento #MeToo ganhar força e mudar a forma como o mundo encarava a cultura de abusos na indústria do entretenimento.
Filha da atriz e modelo Lisa Bonet e do músico Lenny Kravitz, Zoe cresceu em meio ao universo artístico, onde pôde testemunhar situações muitas vezes desconfortáveis e abusivas, mas que eram, em grande parte, normalizadas e silenciadas. Esse ambiente, onde comportamentos tóxicos eram amplamente tolerados, inspirou o filme, uma sátira ácida sobre poder, privilégio e o que acontece quando as elites se consideram intocáveis.
A premissa central de “Pisque Duas Vezes” é exatamente essa: homens influentes e abastados que, confiantes em sua imunidade social e jurídica, abusam de seu poder sem receio de consequências. Embora o longa tenha sido desenvolvido antes de casos notórios virem à tona recentemente, como o de P. Diddy e suas polêmicas White Parties, ele ecoa de maneira forte com o atual momento em que segredos de celebridades começam a ser expostos.
Na trama, conhecemos Frida (Naomi Ackie), uma garçonete comum que se vê surpreendentemente convidada pelo bilionário e excêntrico magnata da tecnologia, Slater King (Channing Tatum), para uma festa em sua ilha privada. Para Frida, essa é a oportunidade de uma vida, a chance de vivenciar um cenário luxuoso e exclusivo, regado a atenção e interesse de um homem poderoso, algo que ela jamais imaginou possível.
Frida leva consigo sua melhor amiga, Jess (Alia Shawkat), e junta-se a um seleto grupo de convidados. Os amigos próximos de Slater incluem Vic (Christian Slater), o chef excêntrico Cody (Simon Rex), e o desajeitado Tom (Haley Joel Osment), além de novos rostos na ilha, como Lucas (Levon Hawke), Camilla (Liz Caribel), Heather (Trew Mullen) e Sarah (Adria Arjona). Embora não tenham trazido suas próprias malas, as mulheres encontram roupas, biquínis e acessórios deixados à disposição para que pareçam sempre prontas para qualquer ocasião. As refeições são preparadas com esmero por Cody, que empunha uma faca Hattori — um detalhe sutil que faz referência ao lendário artesão de espadas samurais Hattori Hanzo, personagem icônico do filme “Kill Bill”, de Quentin Tarantino.
As festas na ilha são luxuosas e ininterruptas, com os convidados constantemente servidos por uma equipe de garçons alinhados e trajados de preto, que lembram os misteriosos sacerdotes de “De Olhos Bem Fechados”, de Stanley Kubrick. Entre goles de drinks sofisticados e tragos de um cigarro de maconha que nunca parece se extinguir, os convidados parecem mergulhar em uma realidade fora do espaço-tempo. Gradualmente, eles perdem a noção do mundo exterior, como se a ilha fosse o único universo existente.
No entanto, o clima de euforia dá lugar ao suspense quando Jess desaparece sem deixar rastros, e ninguém além de Frida parece se lembrar de sua existência. Atordoada e sem respostas, Frida começa a experimentar flashes perturbadores, vislumbres de uma verdade soturna que estava oculta sob o verniz de glamour e festas.
“Pisque Duas Vezes” oferece uma visão inquietante e satírica sobre o privilégio extremo, onde os poderosos vivem à margem das regras que regulam o restante da sociedade. Homens ricos, influentes e com acesso irrestrito a recursos e pessoas, agem como se fossem imunes a qualquer responsabilização, praticando abusos e atrocidades que, embora pareçam inverossímeis, são mais próximos da realidade do que muitos gostariam de acreditar. O filme explora temas como tráfico humano e exploração sexual, sugerindo que, no mundo das celebridades e dos ultra-ricos, crimes desse tipo não são tão raros. Esse grupo, movido por uma visão de si mesmos como semideuses, comanda um universo particular onde seus caprichos e perversões raramente encontram barreiras.
A construção de atmosfera por Zoe Kravitz é refinada e incômoda, mesclando um tom que oscila entre o fascínio pelo luxo e o desconforto diante dos excessos. O cenário exótico da ilha serve tanto para encantar quanto para criar uma sensação de isolamento opressivo, onde qualquer tentativa de buscar ajuda externa parece vã. A trama se desenrola com uma tensão crescente, enquanto Frida, a única personagem que aparenta resistir ao efeito hipnótico da ilha, percebe que está à mercê de um ambiente hostil onde sua própria sanidade é questionada.
Apesar de ser sua estreia como diretora, Kravitz demonstra controle sobre a narrativa, usando o humor seco para tratar de questões complexas de forma provocadora. Em “Pisque Duas Vezes”, a sátira se torna uma arma poderosa para expor o absurdo de um mundo em que dinheiro e fama se convertem em licenças para a impunidade.
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