A sensação entre as séries nos últimos anos se chama “The Bear”, do Disney Plus. Não se fala de outra coisa nos perfis de redes sociais que curtem conteúdos de streaming. As perguntas dos fãs giram, quase sempre, em torno da dúvida: “como um drama triste à beça pode ser classificado de comédia e receber prêmios nessa categoria?”. São três temporadas até agora. Uma quarta já estaria pronta para fechar ou não a história do cozinheiro Carmen Berzatto (interpretado por Jeremy Allen White).
Se a série “This is Us” tinha uma carga emocional forte e empatia de sobra, o traço de “The Bear” é a dor profunda dos personagens. O protagonista luta para levantar o restaurante deixado pelo irmão suicida na cidade de Chicago. E a cidade é personagem da série, com suas figuras humanas, ruas, trens e canais de água.
A primeira temporada tem foco no caos do restaurante da família Berzatto, que ficou nas mãos de Michael (Jon Bernthal) até o seu suicídio. Ele deixa o restaurante de herança para o irmão Carmen ou Carmy. Michael é o fantasma da história e aparece só nas memórias dos personagens. A partícula “Ber” do sobrenome é o apelido (bear/urso) que Carmy carrega na vida — ele com nome de mulher e que remete à origem familiar italiana.
Quem compartilha com Carmy a missão de reerguer aquela espelunca que faz sanduíches italianos, cheia de funcionários insanos e esquisitos, é a chef de cozinha Sidney (Ayo Edebiri). Ela tem, por sua vez, um nome sempre associado aos homens. A dupla mistura assim o masculino, o feminino, a grosseria, a delicadeza, a amargura, a compaixão e, sobretudo, o sentimento de dor.
A segunda temporada deixa um pouco de lado o frenesi do restaurante, que recebe enfim o nome de The Bear, para abraçar a vida dolorosa dos personagens. Como em “This is Us, a história de “The Bear” entra nas memórias daquelas figuras. O passado sofre um processo de desrecalque, aflorando o que estava escondido. Cada novidade é uma bomba que estoura, deixando feridos por todos os lados.
Fios de histórias
Já virou um clássico das séries em todos os tempos o episódio do jantar preparado por Donna (Jamie Lee Curtis), que faz a mãe de Carmy e de Michael. É um filme em si, de duração mais longa e que traz uma situação completa. O riso se junta ao pavor de uma família repleta de cicatrizes e feridas abertas na vida.
A terceira temporada, que estreou em julho deste ano, é a explosão dos fantasmas internos. A edição de imagens é primorosa, e a trilha sonora se casa maravilhosamente ao que os personagens vivem. O primeiro episódio (“Amanhã”) traz a sequência impressionante de lembranças de Carmy, num vai-e-vem do presente com o passado. Até lembra o filme “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick. Tudo se mescla, atiçando mais as sensações ao som da música hipnótica. Quem assiste às cenas, vê o desenrolar de um fio de histórias.
Há na nova temporada sequências bem longas de diálogos. O episódio “Guardanapos” mostra a vida da cozinheira Tina (Liza Colón-Zayas) antes de chegar ao restaurante. É mais uma história dentro da história, como no episódio do jantar da matriarca Donna. Tina está desempregada, chegando aos 50 anos de idade, e vive um desamparo completo, até dar de cara com o restaurante onde se vende comida barata e tem gente louca. A longa conversa de Tina com Michael é quase um ato de uma peça teatral.
Colapsos em série
“The Bear” capta o espírito inquieto da sociedade norte-americana em crise, ambientada na Chicago que guarda um passado de glórias. Já não é mais a cidade que cresceu com a fumaça das fábricas de processamento de carne. Hoje, é o grande centro global que define os preços de alimentos, com sua temida bolsa de valores. Mas Chicago é esse fantasma da finança global que gera uma crise atrás da outra.
A crise exposta em “The Bear” é o colapso dos restaurantes na cidade que, justamente, regula todos os fluxos globais de commodities, a começar pelo complexo carne-soja. Na cozinha de Carmy e Sidney, o desmoronamento atende pelo nome de “trabalho”. Cada prato e cada desavença reproduz as contradições de uma cultura que se equilibra entre a exaustão do trabalho e o desejo por algum alívio. Ou de um fetiche chamado “estrela Michelin”. A expectativa de riqueza é uma abstração.
Assim, a série jamais oferece uma visão reconfortante ou um final simples, pois se trata do velho mundo do emprego. No lugar de um equilíbrio, mesmo que provisório, os personagens — com suas histórias partidas e cicatrizes — lutam para dar algum sentido àquela vida. Desconfiam das promessas de felicidade, mas sonham com a maldita “estrela Michelin”. O restaurante é um refúgio para sonhos frustrados e um palco da batalha para não se perder a esperança.
Entre as paredes gastas do restaurante, habitam os ecos de um passado que moldou não apenas uma cidade (feita pela indústria da carne), mas um modo de vida (o trabalho industrial do século 20). O sonho americano estava ali na Chicago com suas fábricas, que sumiram e deixaram um rastro de ressentimento dos seus trabalhadores. E estes hoje descarregam a mágoa contra os imigrantes.
Chefs em crise
Não há como deixar de ver na trajetória de Carmy a figura de Anthony Bourdain. Como o famoso chef, que rejeitava as romantizações da alta gastronomia e revelava bastidores brutais das cozinhas estreladas, Carmy é o personagem moldado pela exaustão. Trabalhar cansa e esfola. Bourdain desmontou a ideia do chef como um artista em seus livros e programas de televisão. O caminho escolhido por ele foi a exposição das condições de trabalho, pressão e tensão que definem a vida de cozinheiros profissionais.
Na busca para salvar o restaurante da família em Chicago, Carmy herda a visão crua de Bourdain e de Michael. A cozinha não é templo de criações idealizadas, mas um campo de guerra no qual as pessoas trabalham demais, buscam uma perfeição de forma obsessiva e se matam para se manter de pé.
Ambos — Carmy e Bourdain — exibem o desencanto profundo com os modelos de glamour impostos à figura do chef contemporâneo. Eles são tratados como maestros de sinfônicas. A série mostra a jornada de Carmy contra a idealização e espelha o cansaço de Bourdain, diante de um sistema que suga energia e entusiasmo até o limite.
O suicídio do irmão de Carmy (Michael) torna-se uma alegoria do desgaste. Representa o próprio peso emocional que levou o próprio Bourdain a se suicidar quando parecia estar no auge da carreira. Ele havia se tornado uma celebridade global e parecia ter o emprego dos sonhos (viajar o mundo e conhecer comidas).
“The Bear” assume a dimensão de crítica social ao expor não apenas o ambiente dos restaurantes, mas também a expectativa desumana projetada naqueles pobres-diabos que ralam no dia a dia. Eles trabalham até esgotar forças para alcançar a perfeição. É sempre o objeto fantasmagórico da “estrela Michelin” no horizonte.
Ao construir a história de Carmy, a série faz eco à voz crítica social de Bourdain. No coração da gastronomia, não residem os pratos minuciosamente preparados ou os elogios da crítica especializada. É algo mais sombrio e até engraçado de tão infernal que é. A terceira temporada se encerra justamente com a angústia de Carmy para conhecer o que a crítica especializada acha do seu restaurante.