A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez

A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, de Gabriel García Márquez

Li “A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada”, de Gabriel García Márquez, e posso confirmar: Gabo era um gênio até nas pequenas coisas. Como se não bastasse deixar seu nome gravado para a eternidade com uma grande obra, Gabriel tem pelo menos duas: os romances “Cem Anos de Solidão” e “O Amor nos Tempos do Cólera”. Duas obras colossais que competem entre si pelo primeiro lugar, o que coloca o autor numa posição ainda mais elevada do que a maioria dos escritores mundiais. Além desses livros, o escritor colombiano produziu novelas e contos formidáveis, o que destaca sua condição privilegiada. Sua literatura é ampla e igualmente boa em todos os gêneros disponíveis.

As histórias de “A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada” são, em essência, contos de mar. Gabriel narra espetáculos de literatura fantástica, protagonizados por figuras peculiares, com o mar como cenário de fundo. Suas histórias são loucuras causadas pelo infinito marítimo ou por sua ausência, mas sempre com sua onipresença e onipotência, características das histórias que se passam nos litorais.

Gabriel García Márquez
A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada, Gabriel García Márquez (Record, ‎160 páginas, tradução de Remy Gorga Filho)

No conto “Um senhor muito velho com umas asas enormes”, o escritor promove a redenção de Kafka. O que é o inseto, ou melhor, a história do inseto em “A Metamorfose”? Pode-se interpretá-la como o episódio de um recém-nascido tentando se adaptar. As patas do inseto tremendo são os chamados “reflexos de Moro”. O velho de Gabriel é, também, Gregor Samsa. E ele nasceu na lama da Terra, no meio do barro, inusitado, sem explicação precedente, para adaptar-se à nova vida. “Gastava o tempo em buscar cômodo no ninho emprestado, aturdido pelo calor de inferno dos lampiões e velas de promessa que encostavam nos alambrados.” Sua vida se desenrola na escassez de dignidade, mas há uma escapatória que diverge da ruína de Gregor, felizmente.

Em “O mar pedido”, Gabriel enaltece o mar e lhe atribui causas e efeitos. Entre seus atributos, ele é responsável pelos humores das pessoas, pelos futuros e gostos. “Em suas longas insônias aprendera a distinguir toda mudança de ar. De modo que, quando sentiu cheiro de rosas, não teve que abrir a porta para saber que era um cheiro do mar.” Veja, não era um cheiro de mar, era um cheiro do mar.

Em “O afogado mais bonito do mundo”, o mar presenteia uma vila com o corpo de uma criatura meta-humana, batizada postumamente de Estevão, que, para as mulheres que o limparam, era um morto mais vivo que seus homens. “Bendito seja Deus — suspiraram: — é nosso!” A invenção de Estevão é a descoberta da identidade, pois o povoado, com seus poucos e inexpressivos habitantes, é especial, mas não é conhecido, a menos que ocorra um evento ou um episódio que determine sua existência real. O inusitado é o surgimento de um morto formidável.

O melhor conto do livro, e sem dúvida um dos melhores contos de García Márquez, é a obra-prima “Blacaman, o bom vendedor de milagres”. Nele está a essência das figuras ímpares de “Cem Anos de Solidão”, como Melquíades. Aqui existe uma disputa entre o bem e o mal sem lição de moral. A vingança é a tônica dessa história. A mentira é a arma do vilão, e para o herói, a justiça surge com uma solução mágica. A maneira literária de Gabriel para rever a cilada provocada pela situação extrema do narrador é a aparição de superpoderes reais. Mas antagoniza com a premissa de que o trapaceiro ganha dinheiro e fama com o truque. Blacaman é esse homem: um embusteiro que sugere um antídoto para uma picada mortal de cobra e encena um teatro para vender sua mágica. A impossibilidade da existência de poderes reais, num mundo ingênuo, torna o mestre muito superior ao aprendiz que o subjuga. E daí, Blacaman aplica as piores torturas. No conto, o domínio do mais forte sobre o mais fraco descarta a inteligência como elemento redentor. O sobrenatural como capacidade de transformar o destino entra em ação e, literalmente, promove a reviravolta. Na edificação do herói, um requinte de crueldade. Sem ressalvas, a punição pelos maus-tratos é uma ação direta e eficaz.

No conto homônimo, a natureza humana é explorada em seu âmago. A avó do título é uma pessoa péssima, em múltiplos sentidos. Fisicamente grotesca, explora a neta de várias maneiras. Inicialmente, a leva à exaustão com os trabalhos domésticos intermináveis. Após um episódio definido como o “vento da desgraça de Erêndira”, a avó, para que a menina pague uma dívida impossível, explora-a sexualmente. E são filas de homens que irão usufruir do corpo da menina para que a avó tenha seu capital resgatado. É curioso pensar, em um momento da trama, que a avó consola Erêndira ofendendo os soldados que pagaram pelo prazer de possuí-la, com insultos que caberiam a ela própria: “Pervertidos!” Aqui, a presença do fantástico é mais sutil e Gabriel brinca com os contos de fadas, transformando sua Erêndira numa espécie de gata borralheira subversiva. A novela quase ganha um tom cômico em um momento “coiote” e “papa-léguas”, quando o escolhido da menina tenta, desastrosamente, matar a avó. Finalmente, a heroína tem sua glória nas proximidades do mar, por sua conta, solitária e livre.

“A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada” é uma coletânea de contos fantásticos com o mar como moldura. Tem a beleza de máximas inspiradas, como: “Minha mãe diz que os que morrem no deserto não vão ao céu, vão ao mar.” O mar que absorve o incompreensível, que devolve o indesejado e que abençoa todos os párias, ofendidos e desgraçados.