Em alguns momentos, o passado assemelha-se a uma fera aprisionada, confinada em uma jaula dourada e alimentada com cuidado, até que sua verdadeira potência se revela. A obsessão intensa de um jovem por uma mulher com quase duas décadas a mais em idade possui todos os ingredientes de uma relação fadada ao fracasso, e quando tal ligação se complica por abismos ideológicos e morais insuperáveis, é praticamente inevitável que esses conflitos resultem em consequências devastadoras.
“O Leitor” aborda os embates entre corpo e alma, desejo e honra, apresentando-se como uma reflexão complexa sobre as decisões humanas e suas repercussões. A direção firme de Stephen Daldry adapta com precisão o romance de Bernhard Schlink, lançado em 1995, para criar um drama de guerra que exibe camadas de ambiguidade, onde as aparências enganam e o julgamento imediato se mostra imprudente.
Daldry, que também dirigiu episódios da série “The Crown” — retratando a trajetória da monarquia britânica desde a coroação de Elizabeth II (1926-2022) até o enlace de Charles e Camilla Parker Bowles, ocorrido menos de uma década após a morte de Diana (1961-1997) —, traz para a adaptação sua habilidade em construir narrativas que evocam tanto fascínio quanto inquietação. Essa expertise é utilizada para garantir que o público experimente uma história carregada de complexidade e contradições morais, ambientada em um contexto histórico sensível.
A história inicia em 1995, com Michael Berg, que desperta ao lado de uma mulher em uma manhã que, muito provavelmente, será a primeira e última. Ele se veste rapidamente e justifica a partida iminente com a alegação de uma semana repleta de compromissos, um pretexto para seu distanciamento. Esse momento se torna o estopim que o transporta de volta a 1958, quando, aos quinze anos, ele chega à Berlim vindo do interior da Alemanha, enfrentando a fome, a enfermidade e a solidão. Vagando por becos úmidos, prestes a sucumbir, é surpreendido pela presença de Hanna Schmitz, que, embora apressada, retorna para resgatá-lo e o leva para casa, oferecendo um cuidado que beira o obsessivo.
O vínculo entre os dois escapa das convenções românticas. Hanna, ciente da juventude de Michael, assume uma postura ambígua, enquanto ele, interpretado por David Kross em sua juventude, aceita a posição de submisso em troca do afeto singular que ela lhe concede. Hanna impõe uma condição peculiar: antes de cada encontro íntimo, Michael deve ler para ela. A interpretação de Kate Winslet captura com maestria a complexidade da personagem, oscilando entre a insanidade e o magnetismo, e os planos de Daldry, que a retratam despida em várias ocasiões, caminham na fronteira entre a arte e o erotismo.
A história avança até o momento em que Michael descobre o apartamento de Hanna vazio, sem qualquer explicação. Anos depois, já estudante de direito, ele a reencontra no tribunal, escoltada por policiais, durante um dos primeiros processos de julgamento de colaboradores nazistas.
A narrativa não linear, coescrita por Schlink e David Hare, é bem conduzida por Daldry, que alterna entre o passado e o presente de forma eficaz. Ralph Fiennes, no papel de Michael adulto, entrega uma performance intensa, carregada de sofrimento e introspecção, lidando com o maior trauma de sua vida, uma dor que se manifesta como uma lembrança repentina e persistente. O dilema moral que o atormenta é profundo e intransponível, forçando-o a confrontar uma verdade que ninguém pode resolver por ele. O reencontro com Rose Mather, interpretada por Lena Olin, reflete o peso que Hanna ainda exerce sobre sua vida, reabrindo antigas feridas e expondo o ciclo doloroso de sua existência. Se a personagem de Winslet personifica a degradação moral e a ignomínia, Michael tampouco escapa ileso de sua própria carga de culpa.
“O Leitor” é uma análise delicada que explora o papel do acaso nas trajetórias humanas, recusando-se a oferecer respostas definitivas. Sua força reside justamente na ausência de conclusões unívocas, na capacidade de instigar reflexões sobre as falhas humanas, especialmente em tempos em que a moralidade pública se mostra rígida e implacável. Revelar as verdades pessoais exige coragem, ainda mais quando se vive em uma era em que as condenações, justas ou não, são parte do cotidiano.
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