Não existe bolero sem Ravel

Não existe bolero sem Ravel

Há 42 anos cultivo a amizade com um colega médico genial em todos os aspectos. Além de ser vanguardista na Medicina e hoje um expoente nacional, ele apresenta nuances que não condizem com toda a sua inteligência. Bom, mas isso é assunto para outro tema. Luiz Augusto, o nome dele, não tem cultura musical alguma, e quase tudo na música lhe agrada, sem muita distinção ou apreciação. Contudo, há alguns anos ele me revelou que adorava ouvir “Bolero de Ravel”, sem, contudo, se importar com sua história, origem e fundamentos. Obviamente, tal revelação me chamou muito a atenção. Por que diabos Luiz gostava de “Bolero de Ravel”? Ele também gosta de “É o amor”, uma pavorosa expressão dita musical do nosso cancioneiro mais atual, ou seja, mais pobre, para não dizer paupérrimo.

Pois bem, me lancei a ler e ouvir diversas interpretações de “Bolero de Ravel” e a entender o porquê daquela inusitada admiração. Ida Rubinstein, uma atriz e dançarina judia russa, extremamente ousada para sua época, principalmente por ter assumido na década de 1920 ser bissexual, escandalizando a todos, encomendou a Maurice Ravel uma obra com caráter espanhol, na qual ela protagonizaria um balé.

Ravel então a compôs por inspiração em sua mãe, que era de origem basca, e pela sua curiosidade com a música espanhola. Em 22 de novembro de 1928, estreia em Paris, na Ópera Garnier, o balé dedicado a Ida Rubinstein, alcançando um célere êxito, o que proporcionou uma rápida difusão universal, garantindo a Ravel o beneplácito de se tornar um dos compositores mais importantes do século 20 por meio de sua principal obra.

Da história, transcrevo um trecho da crítica de René Chalupt: “Movimento orquestral inspirado numa dança espanhola, se caracteriza por um ritmo e um tempo invariáveis, com uma melodia obsessiva, em dó maior, repetida uma e outra vez sem nenhuma modificação, salvo efeitos orquestrais, num crescendo que, in extremis, termina com uma modulação em mi maior e uma coda [parte final da música] estrondosa”.

Ravel considerava o Bolero um estudo de orquestração; basta ver que a ideia que lhe sobreveio era a de utilizar um tema e um contratema repetidos, em que o único elemento de variação proviria dos efeitos de orquestração, dando sustentação a um crescendo infinito. Com isso, dirigiu-se ao piano e tocou o tema com um único dedo. Daí em diante, seu descontentamento só encontrava fertilidade nos diversos intérpretes, já que cada qual tentou personalizar o Bolero. Com isso, ficou famoso o imbróglio que teve com Toscanini, que interpretou a obra com um andamento duas vezes mais rápido que o original. Por fim, Ravel declarou que o Bolero deveria durar exatos 17 minutos e que os virtuoses são incorrigíveis, imersos em suas fantasias, como se os compositores não existissem.

Bem, com esse prolegômeno introdutório que fiz, o fiz para contar a todos vocês que, no final de outubro, presenciei novamente mais uma audição da OSESP e, dessa vez, na companhia de dois colegas e amigos de turma de Medicina, Edmur e Rondon. Nessa audição, a primeira peça apresentada foi justamente o “Bolero de Ravel”. Emoção do início ao fim, com uma regência impecável, que, no início, me fez pensar que o maestro não estava regendo. Contudo, no decorrer da obra, sua presença se fez notar de forma contundente, com seu domínio total sobre a obra e sua orquestra. Apresentação sublime de uma obra que nos permite ficar tensionados o tempo todo e ainda mais em seu final, que nos impele a levantar e bradar: bravo!