Quando a beleza se desintegra, tudo o que resta é a lembrança da glória passada. Com o envelhecimento, as pessoas são deixadas de lado, esquecidas, descartadas — e isso atinge as mulheres de forma ainda mais cruel. Enquanto homens maduros são considerados mais confiáveis, charmosos e elegantes, as mulheres, ao “perderem” beleza e fertilidade, tornam-se, aos olhos masculinos e misóginos, inúteis e desprezíveis.
Em profissões que dependem da aparência, como a de uma estrela de Hollywood, o envelhecimento é uma tortura. Ele é acompanhado a olhos nus, observado por um público impiedoso, que percebe cada nova ruga, cada fio de cabelo branco, cada milímetro dos lábios que murcham. Em “A Substância”, da cineasta francesa Coralie Fargeat, a dependência da beleza no mundo do entretenimento se traduz em uma comédia sombria e brutal, com referências à “Carrie, a Estranha” e à figura mitológica de Medusa, a deusa grega da beleza que petrificava quem ousasse encará-la.
Demi Moore interpreta Elisabeth Sparkle, uma estrela do cinema que, ao longo de sua carreira, conquistou uma estrela na calçada da fama e um Oscar, mas devido a sua beleza, se tornou apresentadora fitness. Uma verdadeira beldade, Elisabeth começa a sofrer rejeição na emissora onde trabalha por causa da idade. Então, o executivo Harvey (Dennis Quaid) conspira para substituí-la. Em uma cena marcante, Harvey, enquanto critica Elisabeth por sua idade, é filmado com uma lente em grande angular que deforma seu rosto, destacando rugas, dentes sujos e grotescos, enquanto ele devora camarões de boca aberta, como um ogro. A cena satiriza como homens velhos e desleixados são, muitas vezes, os primeiros a criticar mulheres por pequenas imperfeições irrelevantes. A regra parece clara: quanto mais horrenda a figura masculina, mais ele se sente no direito de ditar como as mulheres devem ser.
Elisabeth, apesar de sua beleza, começa a se sentir rejeitada e com baixa autoestima — não tanto pela imagem que vê no espelho, mas pela visão que as pessoas projetam sobre ela. Então, decide participar de um experimento em que injeta uma “substância” que permite que uma versão mais jovem de si mesma literalmente “nasça” de sua coluna vertebral, em vez do útero (já que é considerada infértil). Surge, então, Sue, uma versão rejuvenescida e sensual de Elisabeth, que gradualmente passa a assumir sua vida. Manter-se naquele corpo jovem, contudo, exige um alto preço: além de injeções diárias de líquor retirado da própria Elisabeth, a cada dose extraída, ela envelhece um pouco mais.
À medida que Sue assume cada vez mais espaço, o experimento perde equilíbrio e Elisabeth envelhece de forma irreversível. A aplicação do líquido, que lembra à forma como usuários de heroína a injeta, revela a beleza como um vício tão destrutivo quanto as drogas. O filme de Coralie Fargeat é repleto de metáforas, analogias e simbolismos que aprofundam a trama e reforçam a mensagem. Os homens, sempre retratados como predadores sexuais, grotescos e muito mais velhos que Sue, mas ainda assim a desejando, expõem a p3d0fil1a como raiz do machismo e uma sociedade obcecada por juventude. As atuações intensas de Moore e Qualley tornam a narrativa ainda mais densa e perturbadora.
Um protesto explícito contra a objetificação do corpo feminino e a pressão estética, “A Substância” recebeu nada menos que 11 minutos de aplausos em Cannes, durante o Festival Internacional de Cinema, e é um forte candidato ao Oscar. “A Substância” está no canal Mubi, que pode ser acessado por assinatura dentro do serviço da Apple TV+.
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