Aplaudido por 10 minutos de pé no Festival de Veneza, o filme brasileiro de Walter Salles “Ainda Estou Aqui” é uma adaptação cinematográfica do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado Rubens Paiva, desaparecido durante a Ditadura Militar, e que tem alguns best-sellers na conta. O filme tem esgotado sessões de cinema e é um dos assuntos mais falados da internet brasileira. A ansiedade é grande para saber se o thriller dramático de época vai impressionar a Academia, tanto quanto impressionou em Veneza. E a resposta ainda não parece tão clara. O Oscar pode adorar biografias, mas na maioria das vezes, as deles próprias.
Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, esposa do ex-deputado e engenheiro, uma mulher que definitivamente se impõe como a chefe do lar, determinando o almoço, o horário dos filhos, a rotina da casa. Apesar disso, não se mete nos assuntos profissionais do marido, que atende telefonemas noturnos, entrega pacotes misteriosos e não parece preocupado em dar explicações sobre isso. Uma família de classe média, cercada de amigos sofisticados e intelectuais, que mora em um sobrado de frente para a praia e sustenta sem esforço as cinco crianças que nasceram do casamento. A filha mais velha, Vera (Valentina Herszage), passa um tempo em Londres, mas quando está em casa, registra os momentos em família com sua câmera filmadora analógica, que rende ao filme cenas nostálgicas e saudosas.
Selton Mello é Rubens Paiva, um pai amoroso e marido dedicado, que planeja construir uma casa própria em um lote em local privilegiado, joga totó com o menino Marcelo (Guilherme Silveira) de madrugada em casa e, embora seja contra a ditadura da época, mantém-se discreto em relação às suas preferências políticas, provavelmente na tentativa de poupar sua família do perigo que ronda. Veroca, antes de embarcar para Londres, pede um casaco peluciado de sua mãe emprestado, presente de Rubens de uma viagem a Bariloche, e promete à mãe que trará a roupa de volta. Eunice consente quase relutante; o casaco é querido.
Dias depois da despedida de Vera, em dezembro de 1970, Rubens é levado para um depoimento por homens sem farda. Isso é janeiro de 1971 e Eunice está confusa. Afinal, por qual razão o marido precisa depor? Está afastado da vida política há anos. Os homens garantem que Rubens retornará antes do anoitecer, o que não acontece. Dias depois, Eunice e a filha Eliana (Luiza Kosovski) também são levadas para depor. No meio do caminho, são encapuzadas. Na “delegacia”, são separadas. Eunice é interrogada e jogada em uma cela, onde passa vários dias sem notícias do marido e da filha, recebendo “dicas” de um carcereiro que afirma “não concordar” com o que está acontecendo.
Doze dias depois de ficar no DOI sem nenhum banho ou troca de roupa, sendo constantemente interrogada, Eunice é devolvida aos seus filhos. Eliana havia sido entregue de volta um dia depois de ter sido levada e nada sofreu, para o alívio da mãe. Rubens, no entanto, permaneceu desaparecido, com seu paradeiro cheio de informações desencontradas. Primeiro, disseram que havia sido transferido; depois, que ele havia fugido; e informaram até que nunca o levaram para depoimento. O caso foi parar na mídia internacional, que tentou, por meio da pressão, descobrir informações sobre onde estaria o ex-deputado Rubens Paiva. Sem sucesso.
Eunice passa toda a busca pelo marido escondendo dos filhos as informações que recebe. Sem o marido, a situação financeira da família decai. Primeiro, a empregada da casa é demitida. Depois, eles se mudam para um lugar menor em São Paulo, deixando o tão sonhado projeto da casa própria inacabado no Rio, além do sobrado beira-mar alugado onde tantas memórias incríveis foram construídas. Quando Vera retorna de Londres, se desculpa com a mãe; deixou o casaco dela lá. Eunice suspira e sorri, diz à filha que “tudo bem”. No fundo dos olhos marejados daquela mulher que já perdeu quase tudo, o casaco era o único resquício de dignidade, que também lhe foi tirado. Mas ela jamais demonstraria sua dor aos filhos; afinal, precisava manter a família unida e erguida.
Fernanda Montenegro aparece no fim como Eunice mais velha. Sem dizer uma palavra, demonstra pelo olhar sua grandeza. O filme de Walter Salles é embebido de um sentimentalismo resultante muito de sua própria relação com a família, já que é amigo pessoal dos Paiva. Os minutos finais, quando há salto no tempo, ganharam tom novelesco, o que faz parecer difícil ao Brasil fugir às vezes. No tomatômetro, “Ainda Estou Aqui” tem 91% de aprovação da crítica especializada. “Central do Brasil”, também de Salles, tem 94%. Vale lembrar que “Central do Brasil” disputou o Oscar de Melhor Filme Internacional e Melhor Atriz, para Fernanda Montenegro. O intuito é que “Ainda Estou Aqui” também consiga entrar na disputa ao Oscar exatamente nas duas categorias, Melhor Filme e Melhor Atriz para Fernanda Torres.
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