Talvez seja impossível ler Cormac McCarthy sem se lembrar de William Faulkner. Não porque haja imitação, mas porque a influência é muito nítida. Não vejo forma melhor de aprender sobre alguma coisa do que comparando-a com outra. A comparação enriquece porque, orientada pela finalidade de estabelecer distinções, permite que analisemos com mais vagar os detalhes e os alicerces. Observar é compreender, mas apenas o exercício da comparação gera conhecimento, pois comparar é dialogar, é pensar multiplamente, é saber-se homem do seu tempo inserido em uma história maior que nós, que não nos limita; pelo contrário, nos expande.
A teoria da “angústia da influência”, desenvolvida pelo crítico literário Harold Bloom, explora a relação entre escritores e seus predecessores, sugerindo que a criação literária é profundamente influenciada pela luta de um escritor em lidar com a influência de autores anteriores. Bloom argumenta que os escritores sentem uma “angústia” ao reconhecer a grandeza e a inovação de seus predecessores, o que os força a confrontar e tentar superar essa influência para criar algo original.
Segundo Bloom, essa angústia é um motor fundamental da produção literária, pois motiva os escritores a inovar e buscar novas formas de expressão para se distinguir dos autores que os precederam. Esse processo pode envolver a reinterpretação, subversão ou até a rejeição das obras anteriores, gerando um contínuo diálogo entre o antigo e o novo na literatura.
A “angústia da influência” coloca a literatura em movimento ao perpetuar um ciclo de criação e reinvenção. Cada nova obra literária é, em certa medida, uma resposta às obras que vieram antes, e cada escritor contribui para o desenvolvimento e evolução da literatura ao lidar com essa tensão entre tradição e inovação.
Harold Bloom, em seu livro “A Angústia da Influência: Uma Teoria da Poesia”, de 1973, desenvolve uma análise detalhada sobre como os poetas lidam com a influência de seus predecessores. Bloom não vê essa influência apenas como um processo de inspiração, mas como um confronto psicológico e criativo, onde os escritores tentam afirmar sua própria identidade literária.
Bloom descreve seis “relações revisionistas” ou “ratificações” através das quais os poetas lidam com essa angústia:
Clinamen (Desvio): O poeta desvia ligeiramente da trajetória de seu predecessor, criando uma diferença que permite a originalidade. Esse desvio é visto como um pequeno ajuste que transforma o poema em algo novo.
Tessera (Complemento): O poeta vê a obra de seu predecessor como incompleta e a complementa, criando algo que se pretende uma extensão ou correção do trabalho anterior.
Kenosis (Esvaziamento): O poeta se esvazia da influência do predecessor, abrindo espaço para uma voz nova e distinta. Esse processo envolve uma espécie de apagamento deliberado da presença influente do predecessor.
Daemonization (Demonização): O poeta encara o predecessor como uma figura demoníaca que precisa ser enfrentada e superada. Este processo é muitas vezes uma luta intensa contra a sombra do predecessor.
Askesis (Ascetismo): O poeta se impõe uma disciplina rigorosa para se afastar da influência do predecessor, muitas vezes simplificando ou reduzindo seu próprio estilo para se diferenciar.
Apophrades (Retorno dos mortos): O poeta permite que a voz do predecessor retorne em sua própria obra, mas de uma maneira que subverte a autoridade do predecessor, afirmando a própria originalidade do poeta.
Bloom argumenta que esse processo de lidar com a influência é inevitável e essencial para a criação literária. Ele vê a literatura como um campo de batalhas psíquicas, onde cada poeta luta para se libertar da sombra de seus antecessores e encontrar sua própria voz.
“A Angústia da Influência” é uma obra fundamental na teoria literária, pois oferece uma perspectiva inovadora sobre a dinâmica entre tradição e inovação na literatura. Ao analisar como os poetas lidam com a influência de seus predecessores, Bloom ilumina os complexos processos psicológicos e criativos que impulsionam a evolução da literatura.
A teoria da “angústia da influência” pode ser claramente observada na história do romance norte-americano, onde cada geração de escritores frequentemente confronta e se distingue de seus predecessores.
Século 19
Nathaniel Hawthorne e Herman Melville: esses escritores enfrentaram a influência de autores como Washington Irving e James Fenimore Cooper. Hawthorne, em particular, reagiu contra as tradições românticas e idealizadas do passado, infundindo seus romances com temas sombrios e psicológicos, como em “A Letra Escarlate”. Melville, em “Moby Dick”, desafiou as convenções literárias estabelecidas com um estilo mais complexo e filosófico.
Fim do século 19 e início do século 20
Mark Twain: Twain rompeu com a literatura sentimental e moralista da época, como a de Louisa May Alcott e Harriet Beecher Stowe. Com “As Aventuras de Huckleberry Finn”, ele introduziu um realismo mais áspero e uma crítica social mais incisiva, estabelecendo um novo padrão para a literatura americana.
Henry James: James também enfrentou a influência dos romancistas realistas que o precederam, como William Dean Howells, ao explorar a complexidade psicológica e moral em seus romances, como “Retrato de uma Senhora”.
Modernismo
F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway: no período modernista, escritores como Fitzgerald e Hemingway reagiram contra a literatura da Geração Perdida, incluindo figuras como Sinclair Lewis. Fitzgerald, com “O Grande Gatsby”, e Hemingway, com “O Sol Também se Levanta”, buscaram um estilo mais econômico e uma exploração mais profunda da alienação e desilusão pós-Primeira Guerra Mundial.
Pós-Segunda Guerra Mundial
Saul Bellow e Ralph Ellison: esses escritores confrontaram a herança literária deixada por autores como William Faulkner e John Steinbeck. Bellow, com “As Aventuras de Augie March”, e Ellison, com “Homem Invisível”, trouxeram novas perspectivas sobre a identidade americana e a experiência urbana.
Literatura Contemporânea
Toni Morrison e Don DeLillo: Morrison, em obras como “Amada”, enfrentou a tradição literária branca e masculina, dando voz às experiências afro-americanas de maneira profundamente lírica e histórica. DeLillo, com “Ruído Branco”, explorou a cultura de massa e a fragmentação da identidade na sociedade contemporânea, distanciando-se das tradições realistas anteriores.
A teoria da angústia da influência de Bloom ajuda a iluminar a dinâmica evolutiva do romance norte-americano, onde cada geração de escritores lida com a pesada herança de seus predecessores. Ao lutar para se definir contra essas influências, os escritores não apenas criam obras originais, mas também enriquecem e diversificam a tradição literária americana. Essa constante tensão e reinvenção são o que mantém a literatura em movimento, perpetuando um ciclo de influência e inovação.
Baseando-se na teoria da angústia da influência, podemos formular a hipótese de que Cormac McCarthy não teria se tornado o autor que conhecemos hoje sem a influência de William Faulkner. Esta hipótese pode ser sustentada ao considerar vários aspectos da obra de McCarthy que refletem um diálogo profundo e contínuo com o legado de Faulkner.
McCarthy é conhecido por sua prosa densa e complexa, com frases longas e uma sintaxe intricada que muitas vezes lembra o estilo de Faulkner. Faulkner, especialmente em obras como “O Som e a Fúria” e “Enquanto Agonizo”, emprega uma prosa rica e elaborada que desafia os leitores a navegar por narrativas não lineares e fluxos de consciência. McCarthy, em romances como “Meridiano de Sangue” e “Suttree”, adota uma abordagem semelhante, criando um estilo que exige uma leitura atenta e profunda.
Faulkner é conhecido por suas narrativas ambientadas no sul dos Estados Unidos, particularmente no fictício Condado de Yoknapatawpha. Ele explora temas como a decadência do Sul, a luta racial e as complexas relações familiares. McCarthy, especialmente em seus primeiros romances, como “O Guarda do Pomar” e “Suttree”, também ambienta suas histórias no sul dos Estados Unidos, abordando temas semelhantes de decadência social e conflitos internos.
Inovação por meio da Influência
De acordo com a teoria de Bloom, McCarthy não apenas imita Faulkner, mas também reinterpreta e subverte suas influências. Enquanto Faulkner muitas vezes foca nas dinâmicas familiares e sociais do Sul, McCarthy amplia esse escopo para incluir temas mais universais e frequentemente mais sombrios, como a violência primitiva e a luta pela sobrevivência. Em “Meridiano de Sangue”, por exemplo, McCarthy explora a brutalidade da expansão para o Oeste, criando uma visão épica e quase apocalíptica da história americana.
A luta de McCarthy contra a sombra de Faulkner pode ser vista como um processo de desenvolvimento de sua própria voz literária. Enquanto Faulkner frequentemente mergulha na psicologia de seus personagens, McCarthy adota um estilo mais descritivo e distante, com menos introspecção direta e mais foco na descrição visual e na ação. Esse afastamento pode ser visto como uma forma de “kenosis” ou esvaziamento, onde McCarthy se distancia deliberadamente da abordagem introspectiva de Faulkner para criar seu próprio estilo narrativo.
Tanto Faulkner quanto McCarthy exploram questões profundas de moralidade, culpa e redenção. Faulkner, em obras como “Absalão, Absalão!” e “Luz em Agosto”, investiga a moralidade complexa de seus personagens em um contexto sulista. McCarthy, por sua vez, leva essas questões a um nível mais existencial, questionando a própria natureza da humanidade e da violência. Em “A Estrada”, por exemplo, McCarthy examina a luta pela sobrevivência em um mundo pós-apocalíptico, refletindo uma perspectiva ainda mais desoladora e filosófica sobre a condição humana.
Cormac McCarthy, à luz da teoria da angústia da influência de Harold Bloom, pode ser visto como um autor cuja identidade literária foi moldada pela necessidade de enfrentar e transcender a influência de William Faulkner. Esse confronto não apenas inspirou McCarthy a desenvolver sua própria voz distinta, mas também o levou a expandir e subverter os temas e estilos faulknerianos, contribuindo de maneira significativa para a evolução do romance americano. Sem Faulkner, McCarthy poderia ter seguido um caminho diferente, mas é precisamente essa angústia da influência que catalisou sua inovação e originalidade literária.
Examinemos trechos e exemplos específicos de suas obras, destacando as semelhanças e divergências que ilustram a teoria da angústia da influência de Harold Bloom.
Faulkner é conhecido por sua prosa complexa e estilisticamente rica, como exemplificado em “O Som e a Fúria”: “Através da cerca, entre as flores cor-de-rosa e fúcsia, viam a eles golpearem o campo inclinado. Estavam vestidos de branco e faziam o campo parecer ainda mais verde”.
McCarthy adota um estilo igualmente denso e poético, como visto em “Meridiano de Sangue”: “À noite, ele viajava sob as estrelas enquanto enormes redemoinhos de fogo ascendem no firmamento, e ele via os desertos e planícies como coisas sob um vidro, frios e mortos e prateados pela luz estelar”.
A influência de Faulkner é evidente na forma como McCarthy usa descrições detalhadas e elaboradas para criar uma atmosfera intensa e imersiva. Ambos os autores utilizam uma linguagem rica e evocativa, mas McCarthy desenvolve uma prosa ainda mais econômica e visual, sugerindo uma evolução do estilo de Faulkner.
Faulkner explora a decadência do Sul e suas complexas dinâmicas sociais em obras como “Absalão, Absalão!”: “Era uma mansão de torres e pináculos, construída de madeira importada, que se erguia em meio à desolação das colinas do Mississipi como um monumento à grandiosidade e à queda”.
Em “Suttree”, McCarthy também examina a decadência social, desta vez focando na vida marginalizada em Knoxville, Tennessee: “As ruínas da cidade antiga estavam ali, à beira do rio, onde homens arruinados vagavam por becos escuros e becos sem saída, suas vidas dissolvidas na escuridão”.
Enquanto Faulkner se concentra na história e na queda do Velho Sul, McCarthy amplia essa visão para incluir a marginalização e a desintegração social nas áreas urbanas e rurais. A influência de Faulkner é clara, mas McCarthy aborda a decadência de uma perspectiva mais moderna e universal.
Faulkner frequentemente aborda temas de culpa, redenção e moralidade em um contexto sulista, como em “Luz em Agosto”: “Ele havia caminhado pela estrada até que a noite caiu e o som de seus próprios passos pareceu retornar a ele das trevas ao redor, como se a noite estivesse viva”.
McCarthy explora esses temas em um contexto ainda mais desolador e existencial, como em “A Estrada”: “Ele segurou a mão do menino enquanto caminhavam pela estrada deserta, a paisagem ao redor envolta em cinzas e o céu sempre escuro. O mundo estava morto, mas eles continuavam a avançar, movidos por um impulso primitivo de sobrevivência”.
A transição da exploração de temas morais em um contexto sulista para um cenário pós-apocalíptico demonstra como McCarthy internaliza e reinterpreta as influências de Faulkner. A desolação existencial em “A Estrada” reflete uma ampliação dos temas de Faulkner, levando-os a um nível mais universal e filosófico.
Analisando os trechos e temas das obras de William Faulkner e Cormac McCarthy, podemos ver claramente como a teoria da angústia da influência de Harold Bloom se manifesta. McCarthy absorve, confronta e transcende a influência de Faulkner, desenvolvendo uma voz literária que, embora enraizada nas tradições faulknerianas, evolui para abordar questões mais amplas e contemporâneas. Esse processo de inovação através da influência é o que permite que McCarthy se torne um autor singular, cuja obra é ao mesmo tempo um tributo e uma superação de seus predecessores.
A hipótese de que Cormac McCarthy não seria o escritor que conhecemos sem a influência de William Faulkner não visa diminuir a originalidade ou o talento de McCarthy. Pelo contrário, reconhecer essa influência é um grande elogio a ele. McCarthy conseguiu absorver e reinterpretar a profundidade literária de Faulkner, transformando-a em algo singular e inovador. Ele não é meramente um seguidor, mas um inovador que dialoga com a tradição literária de forma criativa e substancial.
A teoria de Bloom nos mostra que os grandes escritores não surgem no vácuo; eles se formam e se definem em diálogo com seus predecessores. Ao reconhecer a influência de Faulkner, estamos também reconhecendo a capacidade de McCarthy de se envolver profundamente com essa herança literária e de superar a mera imitação. Esse processo de absorção e superação é o que distingue os verdadeiros mestres literários.
Além disso, a maneira como McCarthy lida com essa influência é prova de sua habilidade e maestria como escritor. Ele não se contenta em seguir os passos de Faulkner, mas utiliza a base fornecida por ele para explorar novos territórios literários. Seus temas de violência, desolação e sobrevivência humana ampliam e diversificam os temas abordados por Faulkner, mostrando a coragem de McCarthy em enfrentar questões difíceis e universais.
A comparação com Faulkner também eleva McCarthy ao nível dos grandes escritores que são capazes de influenciar e ser influenciados. Ao colocar McCarthy na mesma conversa que Faulkner, estamos reconhecendo a importância de sua obra no cânone literário. É um reconhecimento de que ele conseguiu alcançar um patamar de excelência que lhe permite ser comparado com um dos maiores escritores da literatura americana.
Esta influência deve ser vista como um testemunho da continuidade e evolução da literatura. Cada geração de escritores contribui para um diálogo interminável, onde a influência de um autor sobre outro é uma parte natural e vital do processo criativo. McCarthy, ao internalizar e transcender a influência de Faulkner, não apenas fortaleceu sua própria obra, mas também contribuiu para o desenvolvimento contínuo da literatura americana, demonstrando seu valor e importância como um dos grandes escritores de nosso tempo.
A comparação entre Cormac McCarthy e William Faulkner não apenas reconhece a influência de Faulkner sobre McCarthy, mas também enriquece nossa compreensão de ambos os autores. Ao explorar as conexões e divergências entre suas obras, ganhamos uma apreciação mais profunda da evolução literária que eles representam. Essa análise ilumina a maneira como McCarthy absorve e reinterpreta os temas, estilos e preocupações de Faulkner, ao mesmo tempo em que revela a originalidade e inovação que McCarthy traz à literatura americana contemporânea.
Para Faulkner, essa comparação ressalta a durabilidade e a abrangência de sua influência. Ver como McCarthy, um dos mais proeminentes escritores modernos, dialoga com a obra de Faulkner, sublinha a importância contínua de Faulkner no cânone literário. Seus temas de decadência, complexidade social e moralidade ainda ressoam fortemente, adaptados e ampliados pelas gerações subsequentes. Isso demonstra a relevância e a vitalidade dos trabalhos de Faulkner, que continuam a inspirar e desafiar escritores e leitores.
Por outro lado, reconhecer a influência de Faulkner sobre McCarthy também destaca a singularidade e o talento de McCarthy. Ele não apenas segue os passos de seu predecessor, mas utiliza essa base para explorar novos territórios literários, ampliando os horizontes da narrativa americana. Essa dinâmica de influência e inovação promove um entendimento mais rico e complexo de ambos os autores, celebrando suas contribuições individuais enquanto enfatiza o diálogo contínuo que define e enriquece a literatura ao longo do tempo.
A teoria da angústia da influência de Harold Bloom oferece uma perspectiva valiosa para compreender a relação entre Cormac McCarthy e William Faulkner. A comparação entre os dois autores não diminui o talento de nenhum; ao contrário, ela realça a capacidade de ambos de dialogar com a tradição literária e inovar a partir dela. McCarthy absorve a complexidade estilística e temática de Faulkner, transformando essas influências em algo único e profundamente impactante, contribuindo assim para a evolução contínua da literatura americana.
Esse diálogo entre McCarthy e Faulkner enriquece nossa apreciação de ambos os escritores. Ele sublinha a importância duradoura de Faulkner no cânone literário e celebra a habilidade de McCarthy em expandir e reinterpretar esses legados literários para novas gerações. Ao reconhecer essas influências e inovações, ganhamos uma visão mais profunda da literatura como um campo de batalha criativo, onde cada nova voz se define e se distingue em resposta às que vieram antes, perpetuando um ciclo de inspiração, confronto e inovação.