O dia em que arrancarem sua cabeça e arremessarem num campo de futebol

O dia em que arrancarem sua cabeça e arremessarem num campo de futebol

Tá difícil manter a sanidade mental dentro das quatro linhas. Parece que todo mundo surtou. Faz pelo menos quatro décadas que frequento estádios de futebol para assistir aos jogos do meu time do coração, o Goiás Esporte Clube. Apaixonado, sim; fanático, não. Já suportei ingressos falsificados, cambistas, empurra-empurra, bafo na nuca, batedores de carteira, chuva de chope, chuva de urina, banheiros emporcalhados, pancadaria generalizada, flanelinhas hostis, mas, isso já é outro assunto. Quero falar do porco. Da cabeça do porco.  

No último final de semana, Corinthians e Palmeiras se enfrentaram na Neo Química Arena em São Paulo. Foi um jogão de bola em que o time da casa meteu dois gols no visitante alviverde. À certa altura da peleja, um torcedor da massa corintiana que lotava o estádio, arremessou uma cabeça de porco dentro do gramado, próximo à linha de fundo no campo de defesa do Palmeiras. Por pouco, o atacante Yuri Alberto não quebra o pé ao dar uma bicuda no objeto, julgando que o mesmo fosse uma máscara de plástico ou de silicone.

Para surpresa do Yuri, do público presente e dos telespectadores, a cabeça do bicho era real, em carne e osso. Suponho que seja a primeira vez na história que alguém atira uma cabeça de um suíno dentro de um campo de futebol profissional. Sou um “romântico” da época da latinha de cerveja, da pilha, do radinho de pilha, das sandálias Havaianas e de outros objetos menos exóticos do que a cabeça de um animal. Portanto, suponho que o estado de estupefação tenha sido mais ou menos generalizado.

Eu digo “mais ou menos generalizado” porque muita gente riu da situação e considerou o ato ingênuo, uma espécie de brincadeira de mau gosto, uma traquinagem, uma reles provocação contra o time adversário. É do conhecimento dos aficionados por futebol que o porco é mascote do time do Palmeiras. Portanto, arremessar a cabeça de um Duroc rosa no gramado poderia parecer aceitável sob certa medida. Só que não.

O lançamento de objetos dentro do campo de jogo é considerado uma falta grave que pode resultar, dentre outras coisas, em multas pesadas e na perda de mando de campo do time mandante. Pelo que apurei, identificaram o espírito-de-porco que comprou a cabeçorra e entrou — sabe-se lá como — com ela na moderna arena do time alvinegro. Li a reportagem em que o sujeito justificava que o atentado fora apenas uma brincadeira inofensiva, que estava bêbado e que não sabia quem, afinal, tinha atirado o pedaço do suíno dentro do gramado. Talvez, de olho no próximo confronto do Timão, o torcedor tenha declarado à autoridade policial que não foi o responsável pelo lançamento do corpo estranho dentro da cancha. Como se ainda estivesse embriagado, alegou que alguém — um desconhecido — surrupiou a cabeça e fez o restante do serviço.

Pode ser que a identificação do transgressor isente o Corinthians de sofrer penalidades como as citadas acima. Contudo, o atentado bizarro suscita algumas reflexões. Estamos testemunhando tempos bicudos. Em certa medida, a violência ganhou corpo nos últimos anos, feito um tsunami e parece permear todas as esferas sociais, na vida real e nas redes sociais. É como se estivéssemos fazendo gols contra a humanidade, dando marcha a ré na história, em termos de civilidade, culminando em aberrações contemporâneas como atirar a cabeça de um animal morto dentro de um campo de futebol ou amarrar um pivete num poste de iluminação pública ou defecar sobre o mobiliário de um prédio público na Praça dos Três Poderes em Brasília.

Parece óbvio demais que o principal motivo para que criminosos travestidos como torcedores de futebol continuem praticando crimes seja a impunidade. Jogos com torcida única, apesar de atestarem a incompetência do estado, dos clubes, das federações e da famigerada CBF para manter a lei e a ordem, constituem uma iniciativa estapafúrdia, relativamente eficaz, para diminuir a violência dentro e fora dos estádios. Punir os clubes de futebol por crimes e delitos ocorridos dentro de suas arenas, a despeito de ser uma medida necessária, não está surtindo o efeito esperado. É preciso alcançar os CPF dos antissociais, urgentemente.  

Passou da hora das autoridades policiais enquadrarem os sociopatas e da justiça brasileira apená-los com o banimento das arenas esportivas e com as demais penalidades previstas em lei. Enquanto a mão do judiciário não recair forte sobre os indivíduos violentos, em particular, os criminosos contumazes que se passam por torcedores de futebol, a truculência que permeia os estádios, as estações de metrô e outros ambientes públicos continuará vencendo de goleada a civilidade, ao ponto, quem sabe, um dia, de revisitarmos a barbárie dos tempos de Coliseu romano, quando seres humanos eram submetidos à violência brutal e devorados por feras, sob o clima festivo das arquibancadas, sob os olhares coniventes de uma plateia igualmente bestializada. Pelo andar dessa crescente onda de violência, de intolerância e de reacionarismo, a próxima cabeça a rolar no gramado poderá ser a nossa.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.