É impossível, mesmo para quem nunca foi fã de esportes, carros ou a junção dos dois, não ficar encantado com a opulência de “Ford vs Ferrari”, uma história sobre homens sonhadores que sabiam serem capazes de fazer de suas vidas algo extraordinário, desde que estivessem dispostos a atropelar o senso comum, a inveja e um império aparentemente invencível. Caroll Shelby (1923-2012), um campeão de automobilismo que se rende à aposentadoria precoce devido a frequentes crises de hipertensão, não se rende aos ardis do ócio e que é hora de trilhar um novo caminho, valendo-se da experiência com motores e pistas.
Até que o filme diga a que veio, James Mangold traça o apaixonante perfil de Shelby, um sujeito que se equilibra entre a resiliência e a intrepidez, dotando seu filme das sequências de velocidade que vão ocupando tudo, sem prejuízo da beleza. O roteiro de Jez Butterworth, John-Henry Butterworth e Jason Keller, um ex-piloto da Stock Car, não precisa de muito para cativar o público desde logo, ancorando-se de dois desempenhos arrebatadores.
Matt Damon tem sempre a justa medida de uma tristeza viril para Shelby, que depois de retirado da adrenalina viciadora e algo tóxica dos torneios profissionais, passa a vender carros praticamente com a mesma verve, ainda que saiba que aquela tinha sido sua melhor fase. Shelby também investe no agenciamento de pilotos amadores como Ken Miles (1918-1966), e tudo indica que, após uma maré baixa, eles terão sua grande chance. Em Detroit, a então pujante terra da indústria automobilística, Henry Ford 2º (1917-1987) dá as cartas e quer diversificar os negócios, talvez prevendo a derrocada de não muito tempo depois.
Shelby se lembra de Miles, um pacato mecânico casado e pai de um filho de treze anos, e vai à oficina dele, numa das cenas mais instigantes de “Ford vs Ferrari”, engenhosa em sua mistura de lirismo, humor e melancolia. Damon e Christian Bale, em mais um dos memoráveis papéis a que dá vida, encarnam cada qual em seu momento, a busca quase irracional do sonho, enfrentando tubarões feito Lee Iacocca (1924-2019) e Leo Beebe, auxiliares de Ford 2º que não conseguem ter a tal ideia brilhante que o chefe procurava e ficam com a cabeça a prêmio quando o personagem de Damon convence o empresário a peitar a Ferrari, a maior escuderia da Le Mans, a corrida mais glamorosa e visada do mundo.
A primorosa direção de arte da equipe supervisionada por Maya Shimoguchi encarrega-se de transportar o público diretamente para aqueles anos mágicos do término da década de 1960, em detalhes a exemplo dos óculos usados por Shelby ou o macacão de Miles, sem mencionar, por evidente, os bólidos que alcançam sete mil rotações por minuto, a fronteira entre a realidade e a fantasia para marmanjos e suas brincadeiras perigosas.
O núcleo dos antagonistas, com Jon Bernthal como Iacocca e Josh Lucas incorporando um híbrido de Bernie Ecclestone e Enzo Ferrari (1898-1988) com muitos milhões de dólares a menos, reaviva a graça masoquista de passar cerca de duas horas diante da televisão a fim de saber quem levaria o caneco e aquele banho de champanhe, que alude a um batismo na igreja do novo-riquismo ou da cafonice pura e simples. “Ford vs Ferrari” é um espetáculo de saudosismo elegante, que na última sequência alude ao fim trágico desses semideuses, espreitados pela morte a cada curva. Como, um quarto de século mais tarde, acabou um certo Ayrton Senna (1960-1994).
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