“Zona de Interesse” provoca um choque profundo, que ecoa bem além dos créditos finais. Ao trazer à tona a monstruosidade nazista, o filme expõe o papel de figuras como Rudolf Höss (1901-1947), comandante do campo de concentração de Auschwitz, na maquinaria do horror instaurado pelo regime de Hitler. A ascensão do ditador à chancelaria da Alemanha em 1933 marcou o início de uma era obscura, com a brutalidade nazista ganhando forma concreta nas ações de oficiais como Höss. Sua frieza em dirigir Auschwitz e viver a poucos metros das câmaras de gás revela uma adesão quase impassível ao terror.
Höss, um dos símbolos daquilo que a filósofa Hannah Arendt denominou “a banalidade do mal”, encarna a indiferença metódica com que muitos conduziam atrocidades em nome do regime. Ele habitava Auschwitz com sua família, na tranquilidade de quem mora próximo a um parque, enquanto as câmaras de gás realizavam a “Solução Final” para a “Questão Judaica”. Essa convivência entre o lar pacato e o campo de extermínio aproxima o público do abismo moral vivido por aqueles que, como Höss, naturalizaram o extermínio.
Jonathan Glazer, ao adaptar o romance homônimo de Martin Amis, constrói uma narrativa visual que permite ao espectador testemunhar a separação entre a realidade apavorante de Auschwitz e a rotina aparentemente normal da família Höss. O diretor conduz o público a uma experiência sensorial que, com ruídos abafados e gritos distantes, vai desvelando o horror oculto sob a rotina doméstica. As paredes do campo de Auschwitz guardam as marcas de tentativas desesperadas de fuga, lembrando o que se passava tão perto e era, paradoxalmente, ignorado por aqueles que ali viviam.
O filme também enfrenta uma questão incômoda: o que motiva um retorno a essas histórias? À primeira vista, pode parecer que reviver esse passado sombrio não acrescenta algo novo para os alemães ou para as comunidades judaicas que carregam esse trauma. Contudo, a primeira cena responde a essa inquietação, mostrando a família Höss desfrutando de um bucólico banho de sol, como qualquer outra. E esse paralelo com a normalidade universal revela o quanto foram também “comuns” na vida que desejavam, abrindo espaço para uma reflexão sobre como a ideologia nazista seduziu até aqueles que, em tese, só buscavam viver em paz.
A fotografia de Lukasz Zal oferece uma visão perturbadora de “limpeza”, evidenciando a discrepância entre a serenidade do lar dos Höss e a brutalidade a poucos metros dali. Utilizando apenas luz natural, Zal mantém uma estética limpa, o que torna o cenário ainda mais inquietante. Höss e sua esposa Hedwig, interpretados por Christian Friedel e Sandra Hüller, estão impecáveis em trajes elegantes — ele em um terno branco e ela em um vestido rosa — contrastando com a proximidade sinistra de Auschwitz, cuja fumaça negra aparece ao fundo, ignorada pelo casal. Esse contraste torna ainda mais cruel a indiferença deles diante do genocídio em curso.
Na dinâmica entre o casal, Glazer constrói uma relação que, sob a superfície de afeto e vida doméstica, assume tons macabros. Celebram aniversários e Natais sem qualquer afetação, enquanto centenas de pessoas morrem do outro lado da cerca. É como se vivessem em um teatro cínico, sem disfarçar a ironia de um cotidiano tão insensível e asséptico diante do sofrimento. Em meio a essa atmosfera controlada e silenciosa, o filme vai provocando a audiência, sugerindo um confronto com o lado mais cínico e vil da natureza humana.
A montagem de Paul Watts nos leva ao Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, onde o calçado e os pertences das vítimas permanecem como lembranças indeléveis do horror. Esse contraste entre passado e presente reforça a conexão inevitável com a história: o sofrimento ali representado permanece vívido e eterno. A visão desses objetos, protegidos por grossas paredes de vidro, encerra o filme com uma lembrança amarga e inescapável de que o peso da história ainda paira sobre nós.
“Zona de Interesse” aborda a linha tênue entre a brutalidade histórica e a representação artística. Glazer nos convida a refletir sobre os desdobramentos dessa convivência perturbadora e a reconhecer que, embora estejamos distantes de Auschwitz, o perigo de sua ideologia ainda espreita entre os escombros.
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