Madame Bovary: a perfeição de Flaubert e a revolução do realismo

Madame Bovary: a perfeição de Flaubert e a revolução do realismo

Antes do século 19, o romance cumpria papéis múltiplos e, em muitos casos, buscava o entretenimento, a moralidade e a idealização dos personagens. Da epopeia às narrativas sentimentais, ele era frequentemente visto como veículo para o heroísmo ou para a edificação do leitor. No entanto, com a modernização das sociedades e o avanço do pensamento crítico, surgiu a necessidade de um retrato mais fiel da condição humana — de personagens que não fossem heróis, mas figuras complexas e ambíguas, pessoas comuns, anônimas, em suas dificuldades e desejos cotidianos. Foi nesta encruzilhada histórica que Gustave Flaubert apresentou ao mundo sua obra-prima, “Madame Bovary”, revolucionando o gênero e instaurando o que viria a ser conhecido como romance realista.

Madame Bovary
Madame Bovary, de Gustave Flaubert (Martin Claret, 398 páginas, tradução de Herculano Villas-Boas)

Flaubert trouxe à literatura um olhar clínico, quase científico, com o qual rejeitava os artifícios da fantasia e da idealização romântica. “Madame Bovary” não apenas narra a vida e o destino trágico de Emma Bovary, uma mulher sufocada por seus sonhos, mas disseca com precisão cada camada de sua existência — suas aspirações, insatisfações e ilusões. Em sua correspondência, Flaubert definia seu método: “Je veux écrire un livre sur rien” (“Quero escrever um livro sobre nada”), numa tentativa de capturar a essência do real, com um rigor estético que era inédito para a época. Dessa forma, “Madame Bovary” ultrapassa o mero relato de um caso de adultério e revela a complexidade humana, o que tornou o romance um divisor de águas na história da literatura.

No entanto, o lançamento do romance foi marcado pela polêmica e pela controvérsia. Publicado pela primeira vez em 1856, “Madame Bovary” foi recebido com choque e escândalo, levando Flaubert aos tribunais sob a acusação de ofender a moralidade pública e religiosa. O processo, que resultou em sua absolvição, não fez senão amplificar o interesse pela obra, e críticos como Sainte-Beuve logo reconheceram a genialidade do autor. Maurice Nadeau, crítico francês e estudioso de Flaubert, afirma que “Flaubert, avec ‘Madame Bovary’, a inventé la modernité du roman” (“Flaubert, com ‘Madame Bovary’, inventou a modernidade do romance”), referindo-se ao impacto decisivo do romance na literatura ocidental.

Gustave Flaubert nasceu em 1821, em Rouen, na Normandia, em uma família de classe média. Sua sensibilidade e talento para a escrita se revelaram precocemente, mas foi com o estudo minucioso e a reclusão deliberada que ele aperfeiçoou sua arte. Suas obras foram escritas lentamente, com um rigor quase obsessivo. Com “Madame Bovary”, Flaubert atinge o ápice de sua estética, e o romance passa a figurar como modelo insuperável para toda uma geração de escritores que aspiravam ao realismo.

A obra de Flaubert inaugurou também uma tradição singular na literatura ocidental: a tríade do adultério no século 19. Ao lado de “Madame Bovary”, destacam-se “O Primo Basílio”, de Eça de Queiroz, e “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Estes romances compartilham uma análise mordaz da sociedade e uma crítica das ilusões românticas, cada um explorando o adultério não apenas como infração moral, mas como síntese de um anseio humano de transcendência e liberdade. Flaubert, Eça e Machado, cada um a seu modo, expõem as limitações de uma sociedade que reprime o desejo e, paradoxalmente, cultiva um ideal romântico inatingível.

A influência de Flaubert se estende também aos seus sucessores imediatos e ao longo do século 20. Autores como Henry James e James Joyce buscaram a mesma precisão narrativa e a intensidade estilística. Jean-Paul Sartre, em “L’Idiot de la famille”, uma análise extensa de Flaubert, reconhece nele o precursor do romance moderno. Segundo Sartre, “Flaubert nous donne une esthétique de la vérité” (“Flaubert nos dá uma estética da verdade”), e esta busca pela verdade literária torna-se uma das heranças mais marcantes de sua obra.

Ainda hoje, “Madame Bovary” ecoa como um marco no estudo literário. O romance não só desafia os limites do gênero, como também faz uma radiografia do desejo humano em sua forma mais crua e inescapável. A técnica de Flaubert, marcada pelo chamado “estilo indireto livre”, permite que o narrador se aproxime da subjetividade dos personagens sem abandonar a distância crítica. Este recurso estilístico inaugura uma nova forma de narrativa, que influencia profundamente a literatura subsequente. Sua estrutura rigorosa e sua prosa lapidada com minúcia são características que tornaram “Madame Bovary” o padrão de perfeição narrativa.

A morte de Emma Bovary é uma das cenas mais pungentes da literatura do século 19. Flaubert retrata sua agonia com uma precisão cruel e uma intensidade quase clínica. A maneira como ele detalha o envenenamento, com o corpo de Emma contorcendo-se e seu sofrimento visceral, serve para evidenciar a falta de idealização que caracteriza seu estilo. Emma, que até então sonhara com uma fuga espetacular de sua vida banal, acaba morrendo de forma profundamente trágica e desamparada. Ela se vê reduzida a uma condição meramente física, despida de qualquer romantismo. É um momento em que o realismo de Flaubert atinge seu ápice: ele expõe a desintegração de Emma sem concessões, em um relato que causa desconforto e evoca, ao mesmo tempo, a pena e a repulsa do leitor.

A cena da morte de Charles Bovary, por outro lado, é desenhada com uma resignação melancólica. Charles, o marido que amou Emma cegamente e jamais percebeu a profundidade de suas inquietações, morre como viveu: numa espécie de letargia, vítima de uma vida guiada por ilusões e devaneios sobre um amor que nunca foi correspondido. Após a morte de Emma, Charles tenta manter-se fiel à imagem idealizada da esposa, mesmo depois de descobrir seus segredos e traições. O seu falecimento é quase anticlimático, marcado pela solidão e pela tristeza, sem a intensidade dramática que caracterizou a morte de Emma. Flaubert o descreve como uma figura passiva, que sucumbe lentamente, como se fosse engolido por sua própria incapacidade de encarar a realidade, enfatizando a ironia trágica de um homem que viveu e morreu sem jamais conhecer verdadeiramente a mulher que amou.

Uma das cenas mais famosas de “Madame Bovary” é o passeio de carruagem de Emma com seu amante, Léon. Nesta passagem, Flaubert emprega uma técnica inovadora, em que sugere o que ocorre no interior da carruagem sem descrever explicitamente os eventos. A metáfora da carruagem, vagando pelas ruas com as cortinas fechadas, representa a paixão clandestina e o desejo reprimido de Emma. Flaubert deixa a cargo da imaginação do leitor os detalhes do encontro, reforçando o suspense e a intensidade emocional sem recorrer a descrições gráficas. Esse jogo de sugestão e omissão reflete o caráter proibido da relação e a excitação de Emma por aquilo que ela vê como uma aventura que desafia as normas sociais, trazendo um refinamento estilístico e uma precisão narrativa que revolucionaram a literatura.

A cena em que Flaubert coloca o comício simultaneamente à exibição de Emma também é exemplar de sua técnica narrativa e de sua crítica social. Ao contrastar a pompa vazia do discurso político com as aspirações íntimas e desorientadas de Emma, Flaubert cria um efeito irônico poderoso. Ele mostra como as instituições e os valores da sociedade — representados no comício — falham em satisfazer as necessidades reais e complexas do indivíduo. A fala do político, recheada de clichês e promessas vazias, ecoa a superficialidade dos ideais que Emma persegue em sua própria vida. Flaubert usa essa justaposição para tecer uma crítica sutil, mas contundente, tanto à hipocrisia das convenções sociais quanto à busca incessante por um ideal inalcançável.

Outra cena que ilustra o contraste entre a realidade e a fantasia é o momento em que Emma compra, compulsivamente, objetos de luxo para decorar sua casa, tentando criar uma vida glamourosa que existe apenas em sua mente. Esse comportamento consumista, ao qual ela recorre para escapar de sua insatisfação, revela sua alienação e o fracasso de sua tentativa de preencher o vazio existencial. Flaubert descreve essas aquisições com uma atenção minuciosa, evidenciando o quão superficiais e transitórias são as conquistas materiais, e como elas reforçam o ciclo de decepção em que Emma se encontra. Ela é uma consumidora de sonhos, iludida pela falsa promessa de felicidade que esses objetos representam.

Outro momento decisivo para o retrato de Emma é sua relação com o padre Bournisien, a quem ela procura em busca de consolo espiritual. Mas o padre está mais interessado em suas próprias preocupações e a desconsidera. Flaubert destaca a alienação do clero em relação ao sofrimento humano, refletindo uma crítica às instituições religiosas que prometem apoio, mas se revelam incapazes de compreender as angústias do indivíduo. O desprezo sutil de Bournisien pela dor de Emma é simbólico da indiferença social que ela enfrenta e que contribui para sua derrocada.

A cena da leitura da última carta de amor de Rodolphe, um de seus amantes, ilustra a profundidade da ilusão de Emma e a crueldade da realidade. Ao reler a carta, ela se afunda em uma melancolia avassaladora, compreendendo o vazio de suas escolhas e o engano de suas paixões. Rodolphe, que nunca a amou verdadeiramente, representa a última gota de desilusão. Com essa cena, Flaubert demonstra o poder devastador do ideal romântico quando confrontado com a vida real, levando Emma à aceitação final de sua própria ruína. Essa última decepção amorosa sintetiza a trajetória de uma mulher que viveu nas sombras de uma fantasia, e que, ao confrontá-la, encontra apenas o abismo.

Essas cenas emblemáticas demonstram como Flaubert usa a estrutura narrativa e o estilo para expor, com frieza e precisão, as camadas de desilusão e autodestruição que marcam a trajetória de Emma. Ao trabalhar com contraposições e detalhes meticulosos, ele estabelece “Madame Bovary” como um marco no realismo, revelando não apenas a psicologia de seus personagens, mas também a crítica profunda a uma sociedade que privilegia as aparências e sufoca o desejo humano de transcendência.

A questão do adultério em “Madame Bovary” não se limita a uma transgressão moral. Emma, ao buscar um escape para sua vida insatisfatória através de relações extraconjugais, revela um conflito profundo entre a aspiração e a realidade. Flaubert não julga sua personagem; ele a observa, com a frieza e a empatia de um cientista. É este olhar impiedoso e, ao mesmo tempo, compreensivo que dá ao romance sua força atemporal. Emma Bovary torna-se, assim, um símbolo universal da desilusão e da frustração.

A leitura de “Madame Bovary” permanece essencial para aqueles que buscam compreender a alma humana e a complexidade de suas aspirações. O romance não é apenas uma obra de arte; é um estudo psicológico, uma análise social e uma reflexão sobre os próprios limites da ficção. Na Universidade de São Paulo, por exemplo, “Madame Bovary” inspira aulas e seminários inesquecíveis no Laboratório de Estudos do Romance, onde o romance é discutido com a profundidade que merece, consolidando-se como um pilar na formação dos estudos literários.

Em última análise, Gustave Flaubert é um mestre da perfeição narrativa. “Madame Bovary” é um dever de leitura para qualquer um que deseje não só conhecer a literatura, mas entendê-la em sua essência mais pura e perspicaz. Com Flaubert, aprendemos que a literatura é, antes de tudo, uma busca pela verdade, um exercício rigoroso de forma e conteúdo, e que cada palavra deve ser escolhida com a precisão de quem entende que, na narrativa, como na vida, não há espaço para o supérfluo.