Desde tempos imemoriais, a arte ultrapassa as molduras para encontrar a pulsação da vida real. Em “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, drama histórico de Céline Sciamma, a protagonista almeja fugir do mundo idealizado e estático da pintura, em busca da experiência tangível do viver, diferenciando-se do eterno prisioneiro do quadro de Dorian Gray. É uma jornada que explora o conflito entre o desejo de liberdade e os grilhões sociais do século 18.
O enredo foca nas trajetórias entrelaçadas de Marianne e Héloïse, cuja relação com a pintura titular revela-se central. Embora a narrativa inicialmente equilibre as perspectivas das duas, uma complexa rede de emoções começa a pender para uma delas. Sciamma usa esse equilíbrio instável para lançar um olhar sobre as restrições impostas às mulheres da época: caminhos de vida limitados ao matrimônio ou ao sacrifício de sonhos, resultando em tragédias silenciosas.
Marianne, pintora vivida por Noémie Merlant, é enviada à Bretanha para retratar Héloïse, prometida a um nobre milanês que exige vê-la antes do casamento. Héloïse, recém-saída de um convento e abalada pela misteriosa morte da irmã, desconhece os planos da mãe condessa. O convívio entre essas quatro mulheres — Marianne, Héloïse, a condessa e Sophie, a criada — revela nuances de cumplicidade e resistência frente às imposições da época.
Inicialmente, Héloïse acredita que Marianne é apenas uma dama de companhia. Contudo, a proximidade inevitável entre as duas cresce, permitindo que Marianne capture, em segredo, os traços da jovem. Sciamma explora essa conexão com delicadeza, utilizando planos-detalhe para destacar os momentos íntimos, como toques de mãos e olhares furtivos, compondo uma atmosfera de sutil erotismo e cumplicidade.
Adèle Haenel, no papel de Héloïse, ganha força à medida que a trama avança, especialmente em uma cena à beira-mar, onde Marianne revela o verdadeiro motivo de sua presença. O filme não esquece os outros personagens femininos: Sophie e a condessa têm arcos próprios que enriquecem o enredo. Um destaque é a sequência em que Sophie, grávida, prepara um chá abortivo com a ajuda de Marianne e da condessa, abordando um tema delicado com naturalidade e sem moralismos.
Embora o destino de Marianne e Héloïse seja previsivelmente separado, dada a ambientação histórica, Sciamma sugere que a vida segue seu curso. As paixões, mesmo intensas, eventualmente se apaziguam, mas deixam marcas duradouras que moldam quem as viveu.
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