A existência humana, em sua combinação de absurdo, patetismo e drama, possui uma beleza singular, comparável às mais serenas histórias de amor, mas com uma peculiaridade: essas narrativas tranquilas raramente nos transportam para o devaneio, aquele estado que nos aparta do ciclo interminável de angústia e desespero que, acreditamos, consome os outros. Tonya Harding encarnou essa dualidade como ninguém.
Transformou sua vida em um palco de glória e ruína, oscilando entre o prazer de suas conquistas e o medo de seus próprios demônios. Em “Eu, Tonya”, Craig Gillespie oferece um retrato cru da patinadora que marcou os anos 1980 e 1990. Desde cedo, Harding buscou fugir de uma trajetória de abusos e negligência: primeiro sob a tutela opressora dos pais, depois em um casamento violento com Jeff Gillooly, que a catapultou do universo esportivo para o noticiário policial.
Gillespie retrata essa jornada com uma sensibilidade brutal, revelando as camadas de uma mulher em constante luta por uma identidade que talvez nunca tenha possuído. Tonya foi moldada por circunstâncias impiedosas: a psicopatia materna, personificada na figura de LaVona Fay Golden, e a violência do marido, ambas forças que transformaram sua existência em uma sucessão de tragédias e reviravoltas. O filme, roteirizado por Steven Rogers, insere entrevistas fictícias para reconstruir os eventos, oferecendo uma visão multifacetada das experiências da protagonista.
LaVona, interpretada com maestria por Allison Janney, não é apenas a mãe abusiva; ela também representa a pressão implacável de uma sociedade que exige perfeição. Jeff Gillooly, vivido por Sebastian Stan, é o cúmplice e algoz em um ciclo de amor doentio e destruição. Essas figuras delineiam a narrativa da ascensão parcial de Harding, uma atleta brilhante que nunca alcançou a glória absoluta, mas que, ao contrário de tantos, ousou desafiar o destino, ainda que o preço fosse a infâmia.
O filme transita entre o grotesco e o sublime, e Margot Robbie encarna essa ambiguidade com intensidade impressionante. Em um papel que exigiu tanto fisicamente quanto emocionalmente, Robbie se transforma em Harding, capturando sua determinação feroz e sua vulnerabilidade latente. Esse desempenho marcante ocorre em um momento chave da carreira da atriz, pouco depois de seu sucesso em “O Lobo de Wall Street” (2013), dirigido por Martin Scorsese, mas ainda distante da consagração com “Barbie” (2023). Allison Janney, por sua vez, entrega uma performance irrepreensível, que lhe rendeu prêmios e aclamação. A dinâmica entre mãe e filha é uma dança de hostilidade e dependência emocional, onde cada embate revela cicatrizes profundas.
O clímax se dá no Campeonato Nacional de Patinação Artística, em 1994, quando o escândalo envolvendo Nancy Kerrigan eclode. A partir desse ponto, Tonya desce ao inferno público, enquanto sua vida privada permanece imersa no ambiente tóxico de LaVona. A cena do ataque a Kerrigan não apenas marca o fim de sua carreira competitiva, mas também simboliza o colapso de sua busca por aceitação e respeito. Gillespie conduz o público através dessa espiral de acontecimentos com uma direção ágil e perspicaz, pontuando o drama com momentos de humor negro que reforçam o caráter trágico e irônico da trajetória de Harding.
“Eu, Tonya” transcende a biografia convencional para explorar temas universais: a luta por reconhecimento em um mundo implacável, os efeitos duradouros do abuso e a complexa relação entre talento e moralidade. No final, Tonya Harding emerge como uma figura que, apesar de suas falhas e decisões controversas, permanece fascinante por sua resiliência e autenticidade. Gillespie oferece uma reflexão poderosa sobre a cultura do espetáculo e as pressões que moldam — e destroem — aqueles que ousam buscar o estrelato.
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