Adaptação cinematográfica de um dos maiores clássicos da literatura latino-americana, que inspirou Gabriel García Márquez, está na Netflix Juan Rosas / Netflix

Adaptação cinematográfica de um dos maiores clássicos da literatura latino-americana, que inspirou Gabriel García Márquez, está na Netflix

O realismo fantástico consolidou-se como um dos movimentos literários mais emblemáticos da América Latina, dando origem a obras imortais como “Cem Anos de Solidão”. Surgido entre as décadas de 1960 e 1970, esse estilo não se limitou a ser um mero artifício narrativo. Foi, acima de tudo, uma ferramenta de contestação, permitindo que autores denunciassem de forma velada os horrores impostos pelos regimes ditatoriais. Por meio de metáforas e alegorias densas, esses escritores lançavam um olhar crítico sobre a violência e a opressão, ao mesmo tempo em que preservavam a capacidade de encantar os leitores com universos de profunda complexidade.

Gabriel García Márquez, ícone do gênero, encontrou inspiração decisiva ao se deparar com “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo. Publicado em 1955, o romance mexicano foi o antídoto para o bloqueio criativo que Márquez enfrentava, ajudando-o a vislumbrar o mítico vilarejo de Macondo e a conceber os personagens que viriam a eternizar seu nome na literatura mundial.

Rulfo, por sua vez, emergiu como uma voz singular no panorama literário do século 20. Mexicano de origem rural, cresceu em um ambiente marcado por conflitos agrários e pela brutalidade das revoluções que moldaram seu país. Desde cedo, a leitura voraz alimentou sua capacidade de explorar temas complexos, transpondo-os para suas obras com uma profundidade intelectual rara. Sua vivência pessoal, marcada por luto e privações, forneceu o pano de fundo para a criação de histórias densas e impregnadas de uma dolorosa reflexão sobre a condição humana.

Essas experiências foram fundamentais para o desenvolvimento de “Pedro Páramo”, romance que transcende a simples narração para se tornar uma exploração filosófica do tempo, da memória e da morte. A estrutura fragmentada e a alternância de vozes narrativas desafiavam as convenções da época, tecendo uma trama que atravessa os limites entre o real e o fantástico. Influências como William Faulkner são evidentes na maneira como Rulfo manipula o tempo e a perspectiva, mas o autor adiciona sua própria visão, profundamente enraizada no contexto sociocultural do México.

A adaptação da Netflix para “Pedro Páramo”, dirigida por Rodrigo Prieto, oferece uma reinterpretação visualmente rica desse clássico. A escolha de Tenoch Huerta para viver Juan Preciado, protagonista que retorna à mística Comala para cumprir a promessa feita à mãe, reforça a intensidade da narrativa. Preciado não encontra apenas ruínas, mas uma cidade assombrada por vozes e sombras que narram tragédias passadas. Essas figuras fantasmagóricas não são meros coadjuvantes; elas representam as vítimas de Pedro Páramo, um latifundiário cuja sede de poder condenou Comala à miséria e ao esquecimento.

O filme consegue traduzir visualmente a ambiguidade de Páramo, um homem dividido entre a tirania e a vulnerabilidade emocional. Sua relação trágica com Susana San Juan é central para essa dualidade. Suzana, explorada e oprimida pelo próprio pai, simboliza a exploração sofrida por Comala nas mãos de Páramo. Prieto, em sua direção, capta com precisão essa tensão, criando uma atmosfera que oscila entre a beleza poética e o desespero profundo.

A narrativa visual do filme mantém-se fiel ao espírito da obra original, explorando camadas simbólicas com uma abordagem estética inovadora. As paisagens desoladas, os rostos marcados pela dor e a presença constante da morte formam um quadro que reflete a essência de Rulfo. A trilha sonora e a fotografia se unem para intensificar essa experiência sensorial, transportando o público para o mundo árido e carregado de significados de Comala.

Mais do que uma simples transposição para a tela, o filme recontextualiza “Pedro Páramo”, oferecendo novas formas de engajamento com temas universais como poder, amor e mortalidade. Prieto demonstra um cuidado meticuloso em cada escolha artística, garantindo que a profundidade emocional e a carga simbólica do texto original sejam preservadas. O resultado é uma obra cinematográfica que não apenas homenageia, mas também reinterpreta o legado de Rulfo, tornando-o acessível e relevante para um público contemporâneo.

Assim, “Pedro Páramo”, seja na literatura ou no cinema, permanece como um testemunho poderoso da capacidade humana de enfrentar o luto, a opressão e a busca incessante por significado. Cada adaptação ou releitura reafirma a intemporalidade de seus temas e a genialidade de seu autor, convidando novas gerações a explorarem os recantos mais profundos de Comala e, por extensão, da alma humana.

Filme: Pedro Páramo
Diretor: Rodrigo Prieto
Ano: 2024
Gênero: Drama/Fantasia
Avaliaçao: 9/10 1 1
★★★★★★★★★