O fado homônimo de Alfredo Rodrigo Duarte (1891-1982), o Marceneiro, gravado por Amália Rodrigues (1920-1999) em 1962 abre “Estranha Forma de Vida”, e já se pode saber que essa não é uma história comum. Com este filme assumidamente excêntrico, Pedro Almodóvar fala da importância de se respeitar os ciclos, quase tudo na vida, metáfora que serve-lhe de passaporte para o western, o único gênero em que nunca se aventurado até então. Aqui, Almodóvar conta a história do amor confuso entre dois homens com o requinte de costume, mas apostando numa violência ora gratuita, ora inerente ao contexto, encadeando revelações perturbadoras num enredo de apenas 31 minutos.
O diretor-roteirista mantém o espectador preso do começo ao último segundo, valendo-se dos recursos que sempre fizeram dele um artista reconhecido em qualquer praça. As cores vibrantes, uma bem-vinda inadequação realçada pela fotografia de José Luis Alcaine, garantem a identidade visual, uma marca registrada do diretor, ao passo que a narrativa vai tomando rumo próprio — ainda que tenha muitos pontos de contato com um grande sucesso de Hollywood.
Almodóvar já disse ter se inspirado em “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), a adaptação de Ang Lee para o romance publicado por Annie Proulx em 1997, mas qualquer pessoa minimamente honesta consegue pontuar diferenças entre os dois trabalhos, começando pela forma como a dupla de personagens centrais é colocada em cena. Silva, um velho caubói, volta a Bitter Creek, um vilarejo perdido em algum lugar do Velho Oeste, e ao entrar no gabinete do xerife, percebe que já viu aquela cara antes, mais precisamente 25 anos atrás. Jake, um homem com quem vivera um romance tórrido, porém fugaz, é a autoridade ali, e neste primeiro momento o diretor fixa-se apenas no caso de Silva e Jake, reservando para uma sequência cheia de tensão o verdadeiro motivo do regresso de Silva, um tipo marginal que transmitiu seu banditismo a Joe, o filho interpretado por George Steane, com quem vive num rancho a algumas milhas de Bitter Creek.
Antes que “Estranha Forma de Vida” invista-se de seu lado bestial, Almodóvar leva-o ao terreno de um homoerotismo suave, que decerto choca muito menos que o rapidíssimo bangue-bangue que inaugura o terceiro ato. A nudez de Silva, deitado de bruços na cama de Jake, marca o fim de uma noite idílica e o princípio de uma discussão quase trágica, durante a qual o xerife deixa claro saber que seu novo velho amante só o procurou por causa das lambanças do filho e ouve dele que eles poderiam ter sido felizes, se Jake admitisse construir uma vida com outro homem — diálogo bastante similar ao que o Jake do filme de Lee trava com Ennis aos pés da fictícia montanha do Wyoming.
Pedro Pascal e Ethan Hawke absorvem a carga dramática de Silva e Jake, lidando bem com as pulsões de vida e morte desses homens agora tão infelizes, mas que, de acordo com um flashback num armazém de vinho, poderiam, sim, ter sido mais que parceiros do sexo sem compromisso, cuja lembrança os perturbou por um quarto de século. Numa preparação para “O Quarto ao Lado” (2024), atores falando em inglês em “Estranha Forma de Vida”, não são páreo para Almodóvar. O amor e o ódio são linguagens que todos somos capazes de entender e legitimar.
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