Instinto é uma palavra que serve perfeitamente a Sylvester Stallone. Ninguém chega aonde Sly, o astuto, ainda está sem uma descomunal medida de transcendência, de achar seu propósito de vida seguindo a própria intuição, sem muitas vezes inventar do zero esse propósito, até que, como diz a voz cava das ruas, a água penetra o rochedo depois de sucessivos golpes. Pouca gente em Hollywood entende de cinema como Stallone, e pouca gente em Hollywood subiu tão alto valendo-se “apenas” de uma percepção finíssima e bastante idiossincrásica do mundo que o rodeia, especialmente deste mundo, o do cinema comercial, quase sempre vulgar, quase sempre descartável.
Em “Rambo — Programado Para Matar”, Stallone dá uma prova de que está mesmo no lugar certo e encarna um soldado recém-egresso da Guerra do Vietnã (1955-1975) que só queria gozar a liberdade de que fora privado no front, mas se depara com um exército de preconceituosos, que sentem asco de sua figura, que querem-no longe. Ao contrário de seu intérprete, John Rambo é um homem de lugar nenhum, deslocado, e tomando por base o roteiro de Michael Kozoll, David Morrell e William Sackheim, Ted Kotcheff apresenta-no com toda a medida de desalento que cabia à boa parte dos jovens americanos do início dos 1980 — ainda que o caminho de Rambo tenha sido não o desbunde dos hippies, também abordado, mas o oposto, o ensimesmamento mais profundo e perigoso, que degringola em implosão e, por fim, acaba extravasando.
Rambo ia para Portland, Oregon, noroeste dos Estados Unidos, andarilhando pelos confins da América, na verdade sem destino e sem ilusões, até ser interpelado por Will Teasle, o xerife de um condado próximo, que o obriga a entrar a viatura e o deixa em algum ponto indeterminado, nos arredores da fronteira com o Canadá. Rambo desce do carro e pelo retrovisor Teasle observa que ele começa a trilhar o caminho de volta, como um cachorro que tem somente o faro por conselheiro, o que faz com que o xerife, tinhoso, também retroceda e queira saber o que o outro pretende, afinal.
Guardadas as proporções, “Rambo — Programado Para Matar” poderia seguir com as performances alternadas de Stallone e Brian Dennehy (1938-2020), mas Kotcheff inclui um terceiro elemento e o coronel Samuel Trautman de Richard Crenna (1926-2003) equilibra o jogo. Depois de embrenhar-se nas as florestas do Pacífico, fugindo da perseguição de Teasle e seus homens, Trautman vem ao socorro de seu “menino”, não por temer o que a polícia pode fazer com ele, mas o inverso.
De tão tolo, o enredo convence e, mais ainda, cativa. Ninguém ousa dizer que o ex-guerrilheiro não tenha razão, bem como qualquer um em seu juízo perfeito sabe que ele deve ser parado, e “Rambo — Programado Para Matar” elabora essa dicotomia aparando quase todas as arestas, não fosse pelo protagonista conseguir ser um dos homens mais perigosos da tela grande munido de uma faca com uma bússola no punho. Quem se não Stallone para tornar esses delírios realidade?
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