Li “Cupim”, de Layla Martínez, e terei que dormir com a luz do corredor acesa. A casa é um objeto inanimado com vontades. A casa é um arquétipo para tudo o que está relacionado à memória, ao passado, ao confinamento dos sentimentos pelos nossos entes mais íntimos, é a doutrina dos sentidos de forma controlada. A casa contém todos os medos, todos os preconceitos, todas as histórias.
Layla Martínez não é a primeira a falar sobre a casa como uma metáfora para nossos sentimentos mais complexos. A casa, organizada ou não, significa nossa relação como os nossos desejos. Na psicanálise freudiana a casa é a psique humana e suas diferentes camadas. A casa representa, para o sonhador, os seus primeiros objetos de desejo. A casa pode representar a mãe. Nada mais conveniente para a história de Layla, que é, essencialmente, sobre mulheres. Mulheres em um mundo de homens. Mulheres tendo que tomar decisões radicais para sobreviverem num mundo muito particular e moderno, mas com regras e condições determinadas por uma força ainda muito masculina e opressora.
“Cupim” é uma investigação do sobrenatural, da mística como conforto e solução para a culpa. Todo o livro se passa, praticamente, dentro de uma casa onde vivem várias gerações de mulheres que, para não se anularem, se enviúvam de alguma forma, real ou metaforicamente. A narradora se encontra entre os extremos: é ao mesmo tempo neta e avó. Conta sobre como uma casa com móveis ruidosos comunica-se com ela através das paredes e de espíritos conscientes que se ligam aos vivos por causa de dívidas do passado. A casa é um receptáculo para confrontos de gerações e uma prisão para infortúnios capazes de tolher liberdades.
Em “Cupim” a personagem principal conversa com fantasmas, santas e santos, faz mágica de amarrações para punir metafisicamente seus oponentes, mas nada disso é obvio, gratuito ou escancaradamente apresentado. Layla tem o comando da magia, dispõe suas personagens de forma dramaticamente sólidas, produz empatia e tensão e cria uma história fantástica cheia de sensibilidade e verdade. Discute um problema ancestral, a submissão feminina, a desigualdade social e os conflitos de gerações de maneira muito original.
Layla consegue um feito muito peculiar. Confusos ficamos por uma boa parte do livro, até que nos deparamos com o sobrenatural confortável, parte orgânica da trama e nos enviesamos com o drama da narradora. A casa é toda a tristeza e o problema, cheia de santos e mortos, subjugados pelo poder de influência da prece, da oração com intenção estabelecida, uma forma curiosa de expor a tradição dos interiores, de quaisquer lugares, que existia num passado não tão distante, esquecido, ou abandonado por não fazer mais sentido, mas que rende ótima literatura. “Eu já disse a vocês, desta casa ninguém vai embora. Estamos presas aqui, nós e as sombras. Minha mãe dizia isso. Estamos presas aqui até que nos levem, me dizia. Até que quem nos leve? Quem quer que saia pelas casas espantando os mortos para que se vão com os santos.”
Cupim é um herdeiro legítimo de clássicos atemporais como “Pedro Páramo”, “Cem Anos de Solidão” e “As Lembranças do Porvir”. Carrega uma semente da grande literatura e do inusitado que perdura. Exige concentração. Exige um querer estar na casa e ter uma das vozes, ou ter ouvidos para ouvir os sussurros. Mas é preciso, depois, para dormir tranquilo, que pelo uma luz não se apague na casa.
Livro: Cupim
Autor: Layla Martínez
Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo
Páginas: 120 páginas
Editora: Alfaguara
Nota: 9/10