A gente ia fazer um país nos anos 1980

A gente ia fazer um país nos anos 1980

O poeta Antonio Cicero tomou a decisão de ter uma morte assistida no mês de outubro. A escolha foi uma medida extrema para ele não ver sua memória ser consumida pelo mal de Alzheimer. Muitas pessoas ficaram perplexas com a notícia, e outros viram nela uma demonstração de coerência do escritor — um eterno advogado da razão. Poucas semanas antes, uma das letras mais conhecidas de Cícero batizou uma exposição retrospectiva que promete marcar época: “Fullgás — Artes Visuais e Anos 1980 no Brasil”.

Dois acontecimentos que parecem coincidência ou uma contingência. Mas podem ser vistos por meio de seus significados e razões. Antonio Cicero não dava nó sem ponta e conhecia bem os fios de meada da vida. Sabia onde estava pisando, como fica bem claro no belo texto, um depoimento que abre o livro “A Poesia e a Crítica”, com o título “Encontros e desencontros com a contracultura”. Nele, o escritor relata um processo formativo, até ter se tornado quem era nos anos 1980.  

A Poesia e a Crítica
A Poesia e a Crítica ― Ensaios, de Antonio Cícero (Companhia das Letras, 240 páginas)

Em 1984, ele e sua irmã, a cantora Marina Lima, criaram uma das frases emblemáticas da transição da ditadura militar para a democracia, na canção “Fullgás”. A música termina com os versos “Você me abre seus braços/ E a gente faz um país”. A “esperança equilibrista” de João Bosco e Aldir Blanc assim se desdobrava por meio de um abraço fraterno, uma nova forma de se relacionar das pessoas. Disso poderia até nascer um país novo, sem a cafonice e a caretice do período anterior.

O otimismo no cenário brasileiro contrastava com o ceticismo em outras partes do mundo. Em 1979, Christopher Lasch escreveu o livro “A Cultura do Narcisismo: A Vida Americana em uma Era de Expectativas Decrescentes”, que traz no subtítulo a visão de um futuro nada promissor. Norte-americanos e europeus se conformavam a um presente sem ambições. O tempo das grandes expectativas ficara para trás. Acrescente-se que o mundo assistia então aos reinados de Ronald Reagan e Margareth Thatcher.

O Brasil teve, na primeira metade dos anos 1980, um sentimento de mudança e grandes expectativas. A produção cultural refletia esse estado de coisas, como sinalizava Cícero. Basta lembrar dos fenômenos do rock brasileiro, a partir de 1982, e de filmes como “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho, e “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos. Um dos maiores êxitos editoriais foi “Brasil Nunca Mais”, que revelou as violências brutais cometidas pelos governos militares.

O que não se imaginava é que aquele caldo político, social e cultural tivesse uma viravolta de grandes proporções no final da década. Hiperinflação, caos administrativo deixado pelos militares, dívida externa insolúvel, violência urbana crescente, tudo isso corroeu as esperanças da população. Uma nova Constituição foi aprovada em 1988, porém desde início se tornou alvo de críticas e projetos de reforma. A herança dos militares deixada para a democracia era um festival de horrores.

Pós-ditadura

(Em 2008, escrevi um texto breve aqui na Revista Bula para falar sobre os anos 1980, época de uma educação sentimental. Experiências novas que tomaram lugar do desastre geral da ditadura militar — que os descolados de hoje gostam de chamar de “civil-militar” para dar um ar de complexidade. A morte de Antonio Cicero estimulou um retorno ao texto para ajustes, atualizações e acréscimos. Na essência, faz sentido esticar argumentos porque estamos hoje, quem sabe de novo, numa fase de transição.)

A produção cultural foi um dos termômetros do que se passava no país na década de 1980. Livros, filmes, peças de teatro, artes plásticas, canção popular estavam em velocidade máxima. Foi o escritor Sérgio Sant’anna quem soltou uma das melhores provocações, com “Um Romance de Geração” (1980). Como fazer um retrato pessoal de um período histórico? No livro, o personagem Carlos Santeiro é um escritor mineiro na cidade do Rio de Janeiro do começo da década que viria a ser chamada de “perdida”.

Morangos Mofados
Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu (Companhia das Letras, 192 páginas)

A narrativa se organiza na forma de um diálogo teatral de Santeiro e uma jornalista que vai entrevistá-lo. Estão lá alguns sinais da época: o indivíduo isolado na metrópole, o culto às bebidas alcoólicas, as polêmicas arte versus política, o apartamento minúsculo na Zona Sul carioca, os vizinhos de olhos grudados na televisão. O engajamento político se diluíra. A dúvida do personagem era sobre o que escrever após o fim da ditadura militar que fomentou a carreira de muitos autores da época.

As narrativas ficcionais dos anos 1980 mostraram como os brasileiros se viam no espelho e o que esperavam do futuro naquela estranha época. Aqui e na Europa, foi a fase da “nova subjetividade”, de muita escrita do “eu”. Bons exemplos são o romance “Tanto Faz” (1981), de Reinaldo Moraes, e o conto “Os sobreviventes”, em “Morangos Mofados” (1982), de Caio Fernando Abreu. Neste último, um homem e uma mulher lembram que já experimentaram de tudo e continuam angustiados: “Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia”.

Os personagens de Abreu não se cansam de falar de experiências sexuais e desconforto com as pressões de trabalhar para sobreviver. Tudo parecia confuso. E era realmente um período muito confuso. A ditadura brasileira caminhava para 20 anos no poder no começo dos anos 1980. O regime havia cortado o laço da classe dos “letrados” com os “simples” do povo que foi ensaiado no pré-golpe de 1964. O dinheiro tornava-se a bússola das relações sociais, e os projetos de uma nação brasileira perdiam popularidade.

Caminhava-se rumo ao desconhecido que, aliás, os Estados Unidos já tomavam conhecimento com Reagan. O ex-ator de cinema inicia a revolução (a “right wing turn”), como bem aparece na peça teatral “Angels in América” (1994), de Tony Kushner, transformada brilhantemente numa minissérie de televisão por Mike Nichols. Tempos que os “fast thinkers” batizaram de Fim da História, após a queda do Muro de Berlim em 1989. Parecia claro que o mundo tomara um novo rumo — mesmo que para pior.

Fim das grandes narrativas

Aqueles anos foram das ideias de Jean-François Lyotard. De um ensaio dele, nasceu uma explicação para o Primeiro Mundo que confundiu a cabeça de muita gente no Terceiro Mundo, sobretudo aqui no Brasil. Segundo ele, as grandes explicações (marxismo, psicanálise, religião) haviam se esgotado. Não adiantava mais buscar a totalidade das coisas, pois restaram apenas fragmentos. A informação e a técnica assumiriam o lugar do conhecimento e da ideologia. Tudo virou pós-moderno.

O trabalho humano perdia sua razão de ser, e o importante era o consumo. O estrago foi imenso num país como o Brasil, que antes mesmo de completar sua formação deveria desconstruir o pouco que já havia feito. Iniciava o momento do desmanche. (Comentário acrescido em 2024: os ecos da confusão se manifestam hoje nas discussões das chamadas políticas identitárias que alimentam o ódio do ultraconservador. E se não existem mais verdades e narrativas verificáveis, surgem as chamadas fake news.)  

Na observação da sociedade que “deixava de ser antes de ter sido algo”, Caio Fernando Abreu tinha dois companheiros de viagem. Naquele tempo, Cazuza viu o indivíduo de vida fácil que “dava autógrafo em telão de cheque” — um aspecto que o filme “Cazuza — O Tempo Não Para” (2004) não conseguiu captar. Ainda disse que “meus heróis morreram de overdose, os inimigos estão no poder”. Nele, se juntavam a tradição popular do samba carioca, o rock’n’roll inglês dos Rolling Stones e a poesia marginal carioca.

Renato Russo notou a geração Coca-Cola dos “burgueses sem religião” e um sujeito nordestino que se muda para Brasília para morrer num “faroeste caboclo” coberto ao vivo pela televisão. Para quem viveu esse período, não é de se estranhar que Abreu, Cazuza e Russo terminassem fulminados pela Aids, a doença que abalou a herança da liberalização sexual dos anos 1960. (Mais um acréscimo de 2024: hoje a doença é plenamente controlável, mas a questão gay se tornou uma arma nas chamadas guerras culturais.)

Um “romance de geração” que focaliza o bode dos anos 1980 é o “Aos Meus Amigos” (1992), de Maria Adelaide Amaral. É a narrativa do luto pela perda de um amigo comum dos personagens. Um poeta suicida que viveu o radicalismo das artes nos anos 1960. A autora reuniu uma trama de vozes melancólicas e faz um trabalho de luto de um período histórico. A conclusão fácil para o leitor de hoje é que vivemos as “ilusões perdidas”, o fim das utopias, a consciência da realidade das coisas.

Colapso

Ninguém sabe o que se passou na cabeça de Chico Buarque ao lançar o romance “Estorvo” (1991), na mesma época que Maria Adelaide escreveu seu livro. A própria esquerda reconhecia a derrota com o fim da União Soviética, e havia a crença de que o mundo seria salvo pelo mercado. Mas, ao invés do luto de geração, o compositor popular e lírico escolheu uma narrativa suja, repetitiva, personagens sem nome, classe média morando em fortalezas urbanas. (Comentário de 2024: enfim, o Brasil em colapso.)

Estorvo
Estorvo, de Chico Buarque (Companhia das Letras, 208 páginas)

O protagonista “Eu” vaga pela metrópole e vai se ferindo pelo caminho. Em que diabo estava pensando um dos símbolos da resistência à ditadura militar ao escrever de forma tão estranha? Poderia ser a resposta ao personagem de Sérgio Sant´anna a respeito da pós-ditadura. “Estorvo” antecipou a linhagem de narrativas das metrópoles em ruínas que, hoje, se disseminam em romances, contos, filmes e canções. Poucos entenderam a obra em 1991, porque esperavam a escrita do decifrador da alma feminina.

Chico Buarque foi um dos poucos a sacar o que vinha ocorrendo no Brasil e escolheu a escrita para desenvolver isso. Saiu o engajamento político, entrou em cena a perplexidade. Não é à toa que, no CD “Carioca” (2006), deu um passo à frente ao flertar com letras de rap que narram a vida louca (vida) nas cidades brasileiras. Ele não se tornou o Mano Brown da MPB, mas estava atento ao caldo cultural que surgia fora dos centros pós-modernos de consumo. É fim de linha, cantou Chico.

(O texto de 2008 terminava com o “fim de linha” cantado por Chico Buarque. Ele continua a produzir e a surpreender. Neste ano, lançou o romance “Bambino a Roma”, uma colagem de memórias inventadas sobre os tempos que morou na capital italiana. A morte de Cícero demandou um desfecho novo, um parágrafo final para conectar as anotações sobre os anos 1980 ao sentimento de hoje.)

O abraço proposto por Antonio Cicero parece inócuo diante do brutalismo social na terceira década do século 21. A lista de fatores é um abismo e chega a dar vertigem só de olhar para dentro: fundamentalismo religioso, classe média que desistiu do Brasil, ódio por minorias sociais, ressentimento contra a produção cultural, pânico moral, salve-se quem puder batizado de empreendedorismo, fake news, queimadas, desastres naturais pela mão humana. Nessa toada, a gente jamais vai fazer um país.