A Vila que Noel Rosa imortalizou

A Vila que Noel Rosa imortalizou

Em 11 de dezembro de 1910, nascia no Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro de Vila Isabel, um menino filho de uma família de classe média baixa, por parto vaginal a fórceps: Noel Medeiros Rosa, com uma deformidade na face, a hipoplasia de mandíbula, que os pais acreditavam ter sido causada pelo instrumento usado no parto. Diante desse fato, Noel teve o rosto marcado por toda a vida, o que lhe provocou, nos primeiros anos de vida, uma leve paralisia na boca. Posteriormente, foi operado por duas vezes, e numa dessas intervenções recorreu-se a uma prótese. O pai, um pequeno comerciante de roupas masculinas, gastou todas as suas reservas com as cirurgias, pois não se conformava em ter um filho “sem queixo”; contudo, as operações não lograram êxito. Com o advento da Primeira Guerra Mundial, seu pequeno comércio faliu.

Frente à derrocada financeira, seu pai foi tentar a vida mascateando pelo interior de São Paulo. Vê-se aí que Noel não teve um pai presente e foi criado realmente pela sua mãe, que era professora e, para ajudar no sustento da casa, constituiu um colégio em Vila Isabel, o Externato Santa Rita de Cássia.

O menino cresceu sem se importar com as galhofas que sofria dos amigos, que o chamavam de “queixinho” por causa de sua deformidade. Pelo contrário, ele usava isso para respondê-los com anedotas inteligentíssimas que criava sempre que era alvo de chacotas. Dizia sempre, sem pestanejar: “não me queixo!”.

Ainda adolescente, Noel já tocava bandolim de ouvido, o que o fez se apaixonar pela música, pois, além de tudo, ela lhe proporcionava a atenção de muitos, o que lhe trazia um certo orgulho, já que, por algum tempo, ele se tornava o centro das atenções, não pelo seu defeito físico, mas por suas virtudes musicais. Pouco tempo depois, já dominava o violão como poucos.

Cursou o Colégio São Bento a partir dos treze anos de idade e, com vinte e um, entrou para a Faculdade de Medicina, sem o êxito de concluir a carreira, já que a vida de artista era por demais atraente. À época, não muito diferente de hoje, os artistas se embrenhavam no samba e na cerveja, e isso era o que fazia Noel feliz, visto que lá ele era “amigo do rei”, teria “a mulher que tanto queria, na cama que escolheria” (com mil perdões a Manuel Bandeira).

A primeira gravação de Noel ocorreu aos 20 anos de idade, com a composição de sua autoria, “Com que roupa”, que fez e faz sucesso há 94 anos, mencionando sua atemporalidade e uma crítica social ainda pertinente. À época, circulava como gíria no Rio de Janeiro a expressão “com que roupa”, cujo significado era “com que dinheiro”. Todavia, alguns especialistas consideram o título da música literalmente, pois Noel pertencia a uma classe de poucos pertences e, ao certo, suas roupas estavam nesse contexto. Há quem diga que, por já apresentar sinais de tuberculose (que seria a causa de seu óbito 7 anos mais tarde), sua mãe trancou seu guarda-roupas para que ele se aquietasse e não mais festejasse a vida como sempre o fez. Independentemente da origem do título da música, o que importa é sua beleza, com rimas pouco usuais, até nos dias de hoje, e uma melodia perfeitamente acoplada à letra.

Ao ser convidado para um samba, o poeta percebe que não possui roupas apropriadas para o momento, pois lhe falta o “faz-me rir”. Isso o aflige de tal maneira que a recorrência do título da obra simboliza sua aflição por não ter o dinheiro necessário para concluir seu intento. Contraditoriamente, na música, ele mantém seu bom humor dignamente.

Tornou-se a grande música e a mais tocada nas rádios no carnaval de 1931. Surge aí o Poeta da Vila!

Em 1931, Noel compõe “Três apitos”, música que não gravou e nem permitiu que ninguém gravasse, sendo divulgada somente após 20 anos de sua morte, pela sua mais importante intérprete, Araci de Almeida.

“Três apitos” é um samba melódico, recheado de humor e ironias, de um homem apaixonado por Clara ou Josefina (não se sabe ao certo), uma operária da fábrica de tecidos Confiança, cujo gerente era pai do não menos importante compositor Braguinha. Preciso abrir um parêntese para Braguinha. Por ser filho de gente graúda, e por isso não poder se misturar com músicos sambistas, resolveu adotar um pseudônimo com nome de pássaro: João de Barro. Compôs centenas de canções, em parceria ou não, como “Carinhoso” (com Pixinguinha), “Pastorinhas” (com Noel), “A saudade mata a gente”, as canções dos discos infantis e centenas de outras músicas. Ele também merece um ensaio. Juntos, Braguinha, Noel, Almirante, Alvinho e Henrique Brito fundaram o Bando de Tangarás, conjunto musical que se apresentou em diversas rádios.

Voltando a “Três apitos”, Noel usa o som do apito da fábrica como mote para um sinal doloroso da lembrança da mulher amada, que permanece impassível, sem se sensibilizar com seus galanteios. Ele contrasta o apito da fábrica, que marca o início, o intervalo e o fim do expediente, com o “grito” da buzina do carro do eu lírico, cujo intuito nunca é alcançado, visto que era um esforço empreendido para uma verbalização mais direta de seu amor.

Na verdade, Noel se desassocia do apito da fábrica de tecidos, visto que esta é um emblemático aglomerado de ideias pelas quais ele não tem a menor simpatia: a desumanização das relações pessoais, a exploração da classe trabalhadora e a falta de espaço para a classe artística, cuja produção não era considerada trabalho produtivo.

Ao longo do poema, sente-se que o eu lírico exterioriza uma combinação de admiração e ciúme em relação à mulher amada, que trabalha na fábrica e parece ignorar tanto o frio do inverno quanto o carinho do pretendente. Quando ele se refere ao gerente impertinente que dá ordens a ela, demonstra claramente um conflito, sugerindo que o poeta se sente como se estivesse competindo com os afazeres laborais da pretendida. Por fim, a sensibilidade do poeta aflora, e este propõe tornar-se guarda-noturno para estar mais próximo da amada, compondo versos ao som do piano.

Entre 1932 e 1935, Noel trabalhou como contrarregra em algumas rádios e teve também seu programa humorístico, “Conversa de Esquina”, no qual parodiava músicas, inclusive as de sua autoria.

Em 1933, compõe “O orvalho vem caindo”, que, na voz de Almirante, se torna a grande campeã do carnaval de 1934.

Ainda em 1933, Noel compõe “Feitio de oração”, na qual descreve o samba como uma oração. Ele nos mostra que o samba não se aprende no colégio, pois é necessário vivê-lo para senti-lo e trabalhá-lo. O poeta afirma que esse é um privilégio, uma declaração melódica de alegria e nostalgia, cujo apogeu é a transformação da tristeza em alegria através do samba, já que, ao iniciar, ele colige a perda e a saudade, nos mostrando até que ponto o samba pode nos modificar. Ao concluir a letra, ele infere que o samba não pertence a ninguém, a não ser àqueles cujo coração suporta uma grande paixão.

Em 1934, Noel se casa com Lindaura, uma sergipana, que pouco tempo suportou o casamento, pois ele persistia em manter suas várias amantes, além de suas noitadas nos cabarés da Lapa, no Rio de Janeiro, onde cantava, bebia e fumava desbragadamente.

A música “Pastorinhas”, composta em 1934 por Noel Rosa e Braguinha, é uma canção que louva o lúdico e o romântico. Entretanto, quando passamos à segunda parte da música, é impossível não notar a perspicácia e audácia de Noel, para a época, ao trazer a personagem bíblica de Madalena, pela sua beleza, como uma morena pela qual está apaixonado e que compõe o quadro das pastorinhas. Ao reverenciar seu amor à morena, ele transcende ao amor eterno. O que no início se mostrou lúdico e puro, quando “a estrela d’alva ao se despontar no céu deixa a lua tonta com todo o seu esplendor” sob o olhar das pastorinhas, agora uma só pastora o encanta, a Morena Madalena. Em minha singela opinião, Noel é um transgressor nato, que pouco se importa em embaralhar o lúdico com o idílico, o que, por sinal, ele transcreve de forma única e sublime.

Ao compor “Feitiço da vila” em 1934, Noel exalta o samba, característica maior do bairro, ao lugar onde nasceu, falando da tranquilidade e segurança de Vila Isabel, onde não há ladrões e, portanto, as casas não precisam de cadeados. Mesmo assim, não deixa de criticar a política de produção do país, pois “Minas dá leite, São Paulo dá café e a Vila Isabel dá samba!” Mais uma vez, a letra se harmoniza com a melodia como se fossem gêmeas.

Em 1935, diagnosticado com tuberculose, foi para Belo Horizonte se tratar, retornando ao Rio assim que recebeu alta. Lá tinha muito trabalho à sua espera, mas também a vida boêmia, para a qual ele voltou devotadamente.

Em 1935, compôs “Conversa de botequim”, uma crônica musicada sobre o dia a dia dos bares cariocas dos anos 1930. A poesia irreverente e até inverossímil em alguns pontos é um ensaio humorístico sobre tipos que frequentavam os botecos da época, maneira que encontrou de criticar a sociedade ao expor a malandragem sutil do carioca da gema, mesmo com poucos vinténs. O garçom é seu mais importante interlocutor, muitas vezes fazendo as vezes de um pseudoanalista. Outro ponto importante a destacar nessa música de enorme alcance cultural é a menção a duas coisas já indexadas à vida do carioca: o futebol e o jogo do bicho. Ele, com sua capacidade mirabolante, usa metáforas para nos explicar como é, na verdade, o verdadeiro boêmio carioca.

Ainda em 1935, Noel nos brinda com “Palpite infeliz”, cujo propósito era responder a Wilson Batista, que há tempos o provocava com músicas rebatendo as suas, como se disputasse algum prêmio com Noel. Em uma dessas provocações, Wilson criticou a Vila Isabel como sendo incapaz de produzir sambas no mesmo diapasão de escolas como Estácio, Salgueiro e Mangueira. Por isso, Noel já inicia a música saudando tais agremiações do samba, enaltecendo sua amada Vila Isabel. Defende, portanto, a capacidade dos moradores da Vila de produzirem sambas tão bons quanto os das demais, pois têm em seu DNA o gene do samba. Qualquer crítica seria, portanto, um “Palpite infeliz”. Sua perspicácia e conhecimento dos meandros da língua mater fazem com que ele “pinte e borde” sem que muitos entendam o que realmente quis dizer.

Por fim, vou falar de “Último desejo”, música autobiográfica que nos mostra entrementes parte de sua vida boêmia, vivida irresponsavelmente até 1936, quando nos deixa, vítima da tuberculose, aos 26 anos de idade. Ele traça em poucas palavras sua paixão por Ceci, uma bailarina do bordel que mais frequentava na Lapa, e pela qual se apaixonou perdidamente. Mais perdido ficou quando ela lhe confidenciou que seu amante era ninguém menos que Mário Lago, aquele que, além de compositor, cantor e ator, era também cobiçado pelas mulheres, visto que sua estampa as agradava muito. Diante de tamanho rival, sentiu que nada resolveria tal imbróglio senão musicá-lo, pois o “não me queixo” não tinha atrativo físico algum. Diante disso, restou-lhe escrever, com Vadico, seu “Último desejo”.

Este ensaio não pretende ser uma sucinta biografia, mas sim comentar nuances de um personagem que se tornou indelével na cultura nacional e no cancioneiro popular brasileiro. A perenidade de suas músicas nos sucederá por vários anos e acredito que jamais se apagará.

Ante tudo o exposto, e sem medo de errar, afirmo que a Vila Isabel dá samba.