Por mais que pareça contraditório, as distopias oferecem um alívio para aqueles que não se conformam com o caos que permeia a existência humana desde tempos imemoriais. A desordem intrínseca à vida na Terra, embora não tenha atingido o ápice do horror retratado em diversas produções artísticas, certamente não nos proporciona conforto ou aceitabilidade. Se ainda não chegamos ao fundo do abismo moral e econômico que nos aguarda, como uma serpente seduzindo sua presa antes de devorá-la, isso se deve, em parte, à compaixão de uma força superior, que observa os infelizes que já perderam o essencial para uma vida digna e permite que cada um de nós continue em sua agonia até a chegada da morte — a única saída para muitos já consumidos pelo desespero e pelo desalento. Em momentos de crise, o canto da velha musa precisa cessar; nessa pausa, novos anseios emergem e as queixas sobre novas carências surgem, perpetuando a roda das misérias humanas.
A necessidade de sobreviver nos leva a adotar uma postura mais combativa em relação aos outros. Essa transformação não é lenta; logo, passamos a incorporar essa nova faceta em nossa essência, impulsionados pelas dificuldades que se ampliam em cenários extremos, onde a vida se torna uma arena brutal, onde é preciso lutar para não ser vencido. As pessoas são despojadas de seu livre arbítrio e sensibilidade, transformando-se em meros reflexos de uma consciência coletiva, abandonando a capacidade de pensar de maneira independente e se submetendo a estratégias vis, não por covardia, mas pela falta de apoio. Com um orçamento robusto, um elenco talentoso e uma narrativa que, apesar de algumas incoerências, se sustenta, Gary Ross dá início à saga “Jogos Vorazes” (2012), que se estenderá por mais três filmes, em grande parte graças à performance de uma estrela que demonstrou, desde cedo, seu potencial.
No cinema, a ficção científica se destaca como o gênero preferido para explorar as questões filosóficas sobre o incerto futuro da humanidade, e “Jogos Vorazes” não é uma exceção. O roteiro, elaborado por Ross, Billy Ray e Suzanne Collins, a autora dos livros que serviram de base para o filme, narra a história de nações da América do Norte devastadas após uma catástrofe — seja ela um conflito nuclear, uma guerra civil que saiu de controle, ou a consequência da incompetência e psicopatia de governantes — que se reagrupam em um bloco chamado Panem, sob o domínio do Capitólio (e qualquer semelhança com a realidade é, sem dúvida, intencional), organizado em doze distritos. O diretor insere na narrativa elementos que levam a reflexões políticas, cujo significado se desdobra ao longo das quase duas horas e meia de projeção, um tempo um tanto extenso, embora a trama se mantenha coesa. Em seguida, o público é apresentado à competição que dá título ao filme: cada distrito deve selecionar dois tributos, uma jovem e um jovem, que lutam até a morte em um espetáculo, evocando os gladiadores da Roma antiga.
Ross mantém a essência da fábula apocalíptica presente na obra de Collins, focando na preparação dos tributos do Distrito 12, o mais empobrecido, para o confronto final. Antes que o filme atinja sua fase mais intensa e sanguinolenta, o diretor investe no romance improvável entre Katniss Everdeen, interpretada por Jennifer Lawrence, e seu adversário Peeta Mellark, vivido por Josh Hutcherson. O desenrolar dessa relação é marcado por uma série de desafios menos evidentes, mas igualmente cruéis, começando pelas aparições no talk show conduzido por Caesar Flickerman, interpretado por Stanley Tucci, que sempre brilha em cena, sugerindo um desfecho enigmático que será elucidado em continua sequência.
Filme: Jogos Vorazes
Direção: Gary Ross
Ano: 2012
Gêneros: Thriller/Ficção científica/Aventura
Nota: 9/10