Considerado um dos maiores romances do século, a obra-prima de Michel Gondry está de volta ao catálogo da Netflix Divulgação / Focus Features

Considerado um dos maiores romances do século, a obra-prima de Michel Gondry está de volta ao catálogo da Netflix

Há um lugar, certamente, onde descansam os amores interrompidos, fracassados ou extintos. Este sentimento — que frequentemente desafia a lógica — é uma das forças mais complexas e incontroláveis que pautam a existência humana. O amor, ao envolver duas pessoas, muitas vezes promove confrontos intermináveis, em que cada parte se apega a seu ponto de vista como se fosse uma competição de certezas frágeis. Nessa arena, o valor da razão perde espaço, pois quem ama acredita possuir uma convicção que, no fundo, sabe ser insustentável.

Mas, quando um relacionamento se encerra, todas as noções de racionalidade se dissipam, como se o amor em si fosse suficiente para existir, independente de argumentos ou justificativas. Mesmo quando verdadeiro, o amor pode chegar ao fim — afinal, tudo na vida é transitório — mas deixa para ambos resquícios de memórias, sejam doces ou amargas. Curiosamente, há quem prefira apagar essas lembranças, como se amar fosse uma atividade leve e descompromissada, destinada apenas ao entretenimento. Tal atitude reflete imaturidade, uma visão distorcida do amor que, na verdade, foge da sua essência e complexidade.

Explorando de forma visceral o conceito de um amor que se torna devastador, especialmente para um dos envolvidos, “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” desponta como um dos filmes mais brilhantes em retratar a intricada realidade de uma relação amorosa. Lançado em 2004, esse trabalho do diretor francês Michel Gondry continua a cativar e impactar plateias e críticos, mesmo passados quase vinte anos. Como ocorre com toda obra de verdadeira profundidade artística e abertura para reflexões filosóficas, cada revisão do filme revela novos ângulos e interpretações. Escrito por Charlie Kaufman, reconhecido por roteiros de alta qualidade ao longo dos anos 2000, “Brilho Eterno” compartilha semelhanças com “Quero Ser John Malkovich” (1999), dirigido por Spike Jonze, ao penetrar, de forma audaciosa, na mente de seus personagens. Contudo, Gondry leva o conceito mais além, inserindo um toque de fantasia que se distancia de explicações científicas rígidas, sem deixar a narrativa cair em abstrações desconexas.

O protagonista, Joel Barish, é um homem introspectivo e melancólico que, em uma decisão impulsiva, embarca em um trem e acaba conhecendo Clementine. Ela se aproxima dele com a clássica abordagem: “Já nos vimos antes?” Joel, ao perceber o tom provocativo da moça, cede ao flerte que, em pouco tempo, os leva a uma intimidade inesperada. Porém, Clementine e Joel não eram estranhos; eles já haviam sido amantes, mas a relação foi dilacerada por desentendimentos e conflitos que deixaram marcas profundas. Episódios memoráveis — tardes sob as cobertas, viagens à praia, promessas feitas sob as estrelas e discussões por ciúmes ou por questões insignificantes — agora parecem enterrados, fruto de um procedimento experimental que apagou essas recordações dolorosas. Essa técnica inovadora prometia libertar os ex-namorados da tortura de reviver o fim de um amor que um dia foi intenso.

Gondry sublinha o tema central de seu filme ao estruturar a narrativa como uma espécie de melodrama contido, onde o foco recai sobre a complexidade das memórias e seu papel na vida emocional. Stan e Mary, os técnicos que operam o procedimento de eliminação das lembranças de Joel e Clementine, inicialmente veem a técnica como uma solução eficaz. No entanto, o desenrolar dos acontecimentos e a revelação surpreendente, construída de forma discreta e sem clichês, acrescentam uma camada inesperada à trama. O enigmático Dr. Mierzwiak, interpretado por Tom Wilkinson, é então convocado a lidar com as consequências de suas invenções, em um esforço para proteger sua pesquisa e seu legado.

A narrativa, propositalmente caótica em sua cronologia e cenários, enfatiza a confusão interna de Joel, que vaga por lembranças fragmentadas em busca de uma verdade emocional que não se encaixa mais em sua realidade. Kaufman e Gondry, com uma abordagem criativa e provocativa, questionam a fragilidade dos relacionamentos modernos, mas sem perder de vista o essencial. O filme nos lembra que o amor depende das memórias para continuar vivo, pois são elas que alimentam e sustentam os laços emocionais, mesmo que dolorosos.


Filme: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
Direção: Michel Gondry
Ano: 2004
Gêneros: Ficção científica/Romance
Nota: 9/10