Faça um favor a si mesmo: reserve um momento do seu dia e assista, no Prime Video, ao filme mais adorável e encantador dos últimos anos Divulgação / Amazon Prime Video

Faça um favor a si mesmo: reserve um momento do seu dia e assista, no Prime Video, ao filme mais adorável e encantador dos últimos anos

Os sonhos são as únicas coisas capazes de tornar a vida mais suportável e menos infame. Que grande revolução haveria de se dar nos povos do mundo inteiro se cada um tivesse sonhos grandiosos o bastante para serem perseguidos sem folga, até que, por fim, saíssem do baço plano das ideias e passassem à vida como ela é, o que, evidentemente, só seria possível se fôssemos todos dignos desses sonhos. Quase sempre é necessário que larguemos tudo, abandonemos a vida que levávamos, sintamo-nos livres para rever determinados pontos de nossa trajetória para que consigamos acessar os meandros mais obscuros de nosso espírito. Depois de uma vida de trabalho duro, o sonho de Ada Harris é ter um vestido — mas não qualquer vestido.

Ada, uma viúva da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) que sobrevive trabalhando como governanta em Londres, junta as economias de uma vida inteira e parte para uma terra que considera encantada, mas nem por isso inatingível, e quem é capaz de julgá-la? Essa primeira impressão cheia de ambivalências em “Sra. Harris vai a Paris”, quanto ao filme e à protagonista, é elaborada com o fino requinte da ironia e a onipresença do lirismo por Anthony Fabian, atento a cada detalhe, um artesão na plenitude de seu ofício. As notas de Fabian acerca do romance homônimo de Paul Gallico (1897-1976), de 1958, têm muito da natureza satírica genuinamente britânica, que o diretor transforma em beleza a partir de cenas sem nada de mais, malgrado contem com os figurinos de Jenny Beavan, indicada ao Oscar em sua categoria. E, por óbvio, com uma atriz dinâmica e sensível o bastante para compreender as muitas cores da sonhadora Ada Harris.

Sem pressa, o mais cínico dos verdugos permite que nos locupletemos com o confortável sofisma que esconde uma promessa qualquer de felicidade, sendo que o gênero humano está essencialmente condenado a perseguir a quimera de ser feliz, já que o mundo é, como na caverna de Platão (428 a.C — 348 a.C), só um simulacro das projeções muito íntimas de cada um, de conceitos eivados de nossas idiossincrasias as mais diversas, que por seu turno mantêm-nos mais e mais encafuados em nossos sonhos e delírios. Realidade das mais incontestáveis dentre todas, a ditadura do tempo se estende para além de nossa vã filosofia e de nossa exígua compreensão, e, enquanto houver alguma forma de vida pulsando no caos maravilhoso do universo, ela sempre haverá de existir.

Ada não conhece filosofia, mas conhece a vida, e Lesley Manville deixa isso muito claro. A adorável perdedora de “Sra. Harris vai a Paris”, talvez a Holly Golightly de “Bonequinha de Luxo” (1961), o clássico dirigido por Blake Edwards (1922-2010), mais experiente e mais sofrida, quer provar para si mesma que está viva, e o jeito que o encontra para o fazer é seguir para a Cidade Luz, onde conhece outras pessoas e têm a chance de saber que estar no mundo pode ser uma outra coisa, muito diferente do que pensou até então. A controvérsia quanto ao desfecho, oposto ao que se dá no livro de Gallico, nem de longe empana o brilho de uma história tão singular. A propósito, o vestido era só um Dior.


Filme: Sra. Harris vai a Paris
Direção: Anthony Fabian
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Comédia 
Nota: 9/10