Sergio Leone (1929-1989) ficaria orgulhoso de “Thar”. A história sobre tráfico de drogas, mortes brutais e uma vingança urdida em fogo baixo contada por Raj Singh Chaudhary remete, em alguma medida, a “Três Homens em Conflito” (1966), quiçá o faroeste mais cheio de camadas, sutis e arrebatadoras, já levado à tela, façanha do realizador mais criterioso que esse gênero tão peculiar já conheceu. Aqui, o indiano Chaudhary vale-se dos ensinamentos de Leone para arriscar-se numa espécie de romance de formação de seu povo, com direito a caubóis que roubam e massacram famílias inteiras, a despeito de terem seus rostos nos famigerados pôsteres de “procura-se vivo ou morto” espalhados por Munabao, uma vila na fronteira com o Paquistão. O diretor e os corroteiristas Anthony Catino e Yogesh Ishwar remodelam os arquétipos celebrizados por Hollywood a fim de obter os novos efeitos que lembram o western como o conhecemos, porém com o característico tempero da Índia, o que, claro, nunca poderia agradar a todos. Mas que provoca encantamento assim mesmo.
Em 1947, a Índia estava rachada, mas já sopravam os ventos da revolução que levou à independência, em 15 de agosto daquele ano. Essa terra pacífica, magicamente excêntrica, vivencia desde sempre eventos improváveis, que continuam a acontecer a todo instante, sem que ninguém jamais saiba ao certo o porquê. Chaudhary põe um jovem casal num encontro furtivo a horas mortas para contextualizar o caos enfrentado por Munabao, e, na sequência, o pai da garota, um pastor de cabras, é chacinado por uma gangue e tem o cadáver pendurado numa árvore. As autoridades incumbem o inspetor Surekha Singh para averiguar o caso, e mesmo prestes a se aposentar, essa é uma figura onipresente, essencial para que o vilarejo, abandonado, alcance o progresso de que tanto necessita. Passadas quase quatro décadas,
Surekha, um autêntico filho de Munabao, transita por entre gente de todas as castas, e Anil Kapoor encarrega-se de conferir personalidade a esse homem íntegro, mas descorçoado frente à capilaridade do mal. Uma síntese perfeita do que dizia Leone em seus filmes.
“Thar” é uma prova de que, aos poucos e a custo, a Índia dobra as imposições culturais que vão surgindo ninguém sabe exatamente como, mas que não tardam a se cristalizar e na carne e no espírito de seu povo, ganhando uma aura de verdade absoluta e inconteste que não pode ser desafiada jamais, sob pena de maldições para além deste plano. E que quando não o consegue é capaz de proezas semelhantes.
Filme: Thar
Direção: Raj Singh Chaudhary
Ano: 2022
Gêneros: Faroeste/Ação
Nota: 8/10