Obra-prima de Denis Villeneuve indicada a 163 prêmios e vencedora de 2 Oscars, na Netflix Divulgação / Sony Pictures

Obra-prima de Denis Villeneuve indicada a 163 prêmios e vencedora de 2 Oscars, na Netflix

Lançado em 2017, “Blade Runner 2049” de Denis Villeneuve não apenas revisita, mas renova e expande o universo do filme icônico de 1982, dirigido por Ridley Scott. Mais de três décadas após o original, essa continuação encontra seu impacto não somente no visual de alta qualidade, mas na capacidade de Villeneuve de integrar temas existenciais e filosóficos que se encaixam nas tensões contemporâneas.

A película reafirma que as grandes produções culturais ganham relevância ao refletirem o contexto de seu tempo, distanciando-se das amarras de seu passado. Ainda assim, Villeneuve nunca pretendeu obscurecer a grandiosidade do trabalho original; ao contrário, sua visão enaltece a obra de Scott, enquanto o próprio Scott, em um gesto de autocrítica, reconhece que sua criação pode ser reinterpretada e adaptada. A sintonia entre ambos permite que o filme se transforme em uma expansão de ideias, com Villeneuve seguindo uma trilha onde a reverência e a inovação convergem para criar uma narrativa que abraça o novo sem renegar o velho.

Essa parceria criativa revela o interesse comum por explorações que se desviam do lugar-comum e de respostas fáceis. “Blade Runner 2049” é inspirado no questionamento radical que marca o livro de Philip K. Dick, autor do romance “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, de 1968, que deu origem ao filme de 1982. Considerado um dos nomes mais arrojados da ficção científica do século 20, Dick era conhecido por sua visão distópica e pela crítica à alienação tecnológica, embora tenha recebido com ceticismo as primeiras tentativas de adaptar sua obra para o cinema.

Quando soube que os direitos de seu livro haviam sido vendidos sem seu consentimento ao produtor Herb Jaffe, Dick chegou a expressar um profundo desagrado, prevendo que sua história seria deturpada. Felizmente, o projeto seguiu em frente e ganhou tração com o apoio de Michael Deeley, o que possibilitou o lançamento de “Blade Runner” em 1982. De cult para uns e polêmico para outros, o filme levou tempo para consolidar sua posição de clássico, enquanto um público cativo o preservava como uma referência singular.

Ao escolher Villeneuve para dirigir a sequência, Scott demonstrou não só humildade, mas discernimento: envolvido em outros projetos, ele passou a função de direção para o franco-canadense, limitando sua participação à produção executiva. Villeneuve, por sua vez, já possuía um portfólio impressionante que incluía “Os Suspeitos” (2013), “O Homem Duplicado” (2013), “Sicario: Terra de Ninguém” (2015) e “A Chegada” (2016) — este último, especialmente, um marco no cinema do século 21, refletindo temas de exploração científica e questionamentos sobre o progresso tecnológico. Em “Blade Runner 2049”, ele une essas influências e oferece uma interpretação singular, onde o uso da tecnologia e as implicações morais do avanço humano estão sempre em primeiro plano.

No enredo, o protagonista K, interpretado por Ryan Gosling, é um caçador de replicantes em busca de Rick Deckard, o personagem clássico vivido por Harrison Ford. O próprio K é um misto de humano e ser programado, uma entidade que enfrenta dilemas existenciais enquanto caça suas presas. Deckard, o replicante sobrevivente do filme de 1982, tornou-se uma figura mítica, vivendo à margem e simbolizando a persistência da máquina contra o tempo e o desuso. Para K, que é impelido a buscar sua própria identidade e significado, Deckard é tanto um modelo quanto uma ameaça. A interação entre os dois coloca em perspectiva a angústia da existência e o que significa “ser” em um mundo onde até os sentimentos parecem programados. K encontra consolo numa relação digital com Joi, interpretada por Ana de Armas, uma companhia virtual que, embora projetada para ele, não possui a tangibilidade do mundo real, revelando-se como mais uma criação artificial.

Explorado sob a lente do existencialismo, em que a existência precede a essência, “Blade Runner 2049” sugere que o conhecimento e a experiência são os únicos atributos que podem definir a humanidade. K deseja ser humano, mas suas ações e memórias, em última instância, são pautadas por códigos e algoritmos. A metáfora de um cavalinho de madeira — o MacGuffin da trama — sintetiza a busca por um propósito e funciona como um ponto de ligação para o protagonista, simbolizando a jornada de autodescoberta e um desejo desesperado de pertencimento.

Visualmente, o filme é uma obra de arte, com a fotografia de Roger Deakins servindo como uma das colunas centrais da narrativa. As cenas são projetadas com maestria e convidam o espectador a se perder em um universo de tons sombrios e distopias contemporâneas, onde a beleza é permeada pela desesperança. “Blade Runner 2049” se conecta com a estética noir e constrói um ambiente que ilustra um futuro cada vez mais dominado pela tecnologia, onde a humanidade parece gradualmente aceitar sua submissão. A ameaça das máquinas persiste, e o filme questiona: até que ponto estamos prontos para esse futuro? Como o próprio Dick insinuaria, o embate ainda está longe de ser resolvido.


Filme: Blade Runner 2049
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2017
Gêneros: Ficção Científica/Ação
Nota: 10/10