Os documentaristas de não-ficção frequentemente trazem uma clareza incomum ao explorar temas que, sob o olhar de cineastas imersos na fantasia, acabam ficando envoltos em abstrações poéticas. Em 2020, Liz Garbus decidiu transitar do documentário para a ficção, oferecendo sua expertise ao thriller “Lost Girls: Os Crimes de Long Island”. O filme aprofunda-se em um caso sem solução que inflamou a cobertura sensacionalista da mídia e lançou dúvidas sobre a eficiência da polícia norte-americana contemporânea. A transição de Garbus para o universo ficcional pareceu natural, sustentada por seu talento em explorar fatos de forma contundente. Colaborando com o roteirista Michael Werwie, que anteriormente escreveu o intenso “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” (2019), Garbus infunde o filme com uma autenticidade que só alguém de seu calibre no documentário poderia alcançar.
A carreira de Garbus deu um salto com o aclamado “What Happened, Miss Simone?” (2015), um retrato impactante da cantora e ativista Nina Simone que lhe rendeu um Emmy e uma indicação ao Oscar. Esse longa-metragem, composto de registros raros e marcantes da artista, elevou seu reconhecimento em Hollywood, estabelecendo-a como uma cineasta pronta para encarar narrativas igualmente desafiadoras. Em “Lost Girls”, Garbus evita o risco de deslizar para o melodrama exagerado, preservando a essência crua das complexas relações humanas que o enredo demanda, especialmente quando examina os limites da compreensão entre aqueles que se amam, mas pouco se entendem.
A maternidade desafia toda lógica. Durante nove meses, uma mulher carrega um ser em formação, uma extensão de si com vida própria e um sistema independente. Ao nascer, essa conexão transforma-se em um período intenso de amamentação e cuidados, que alguns aconselham estender por até dois anos, uma tarefa que apenas algumas conseguem manter. Após o peito, vem a transição para a mamadeira, acompanhada do consumo infindável de fraldas e lenços. O momento em que a criança começa a usar o banheiro sem ajuda é o primeiro passo de uma separação dolorosa, vivida de forma intensa tanto pela mãe quanto pelo filho.
Na escola, a criança passa a se enxergar como parte de um grupo, aprendendo a competir pelo mesmo espaço, brinquedos e atenção. E quando menos se espera, a independência já se afirma em necessidades e personalidades próprias. Desde o nascimento, os filhos buscam diferenciar-se dos pais, desafiando o instinto materno que acredita no apego. As reações a essa independência variam; algumas mães optam por mantê-los sob uma vigilância velada, enquanto outras os deixam livres para viver de acordo com o que acreditam ser o melhor para sua felicidade. No entanto, os sonhos e escolhas dos filhos frequentemente os afastam da ideia de realização plena, e muitas mães descobrem, tarde demais, que recuperar essa conexão se torna uma missão já fora de seu alcance.
Na interpretação de Amy Ryan, Mari Gilbert parece distante de qualquer conceito de serenidade ou contentamento. Desde o início, a personagem exibe uma tensão constante, resultado de uma vida de pobreza, invisibilidade e desamparo. Essa tensão é intensificada quando sua filha Shannan, interpretada por Sarah Wisser, desaparece misteriosamente em Ellenville, Nova York, em 2010. A última a falar com Shannan foi sua irmã Sherre, vivida por Thomasin McKenzie, revelando a gradual perda de contato entre mãe e filha. Com a confirmação da polícia sobre uma chamada de emergência na noite anterior, a família começa a enfrentar a realidade sombria de que algo terrível aconteceu com Shannan. É esse desaparecimento que permite a Garbus desfiar os diversos elementos da trama, expondo a inércia e a falta de prontidão da polícia em ajudar pessoas marginalizadas.
A interação entre Mari e o comissário de polícia, interpretado por Gabriel Byrne, adiciona camadas de crítica à estrutura policial, que falha em proteger os mais vulneráveis. Quando descobrem um terreno onde foram enterrados os corpos de quatro mulheres, a sugestão de um assassino em série movido por motivações obscuras ou puro ódio toma forma na mente de Mari, levando-a a suspeitar do médico Peter Hackett (Reed Birney), embora nunca haja provas contra ele. A descoberta devastadora e o reconhecimento do fracasso do modelo familiar empregado mostram-se igualmente perturbadores e reveladores, sem espaço para a reparação.
Em “Lost Girls: Os Crimes de Long Island”, Garbus se mostra hábil em manter a narrativa suspensa entre a tensão e o realismo. A trama, ao invés de descambar para o drama superficial, captura o público por meio de uma abordagem emocionalmente autêntica, atingindo um ápice impactante nos momentos finais.
Filme: Lost Girls: Os Crimes de Long Island
Direção: Liz Garbus
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 9/10