“Dublê de Corpo” talvez seja o menos óbvio dos filmes de Brian De Palma, um dos cineastas menos óbvios de que se tem notícia. Só mesmo De Palma para misturar suspense, romance, dilemas existenciais e uma pitada generosa de pornografia mostrada com o requinte de hábito, o que dá numa história fluida, envolvente e cheia de gratas surpresas, como ver um anti-herói meio tolo ir se transformando numa legítima criatura do submundo de Los Angeles, tudo para, segundo acredita, desvendar um crime brutal.
Tendo Hitchcock por clara inspiração, o diretor e o corroteirista Robert J. Avrech chegam a seu próprio tom, mirando, como sói acontecer nas produções assinadas por De Palma, no que não é dito ou mostrado, mas apenas sugerido. Imagens e palavras convergem para um objetivo comum, qual seja, fazer que recaiam sobre o personagem central suspeitas apropriadas e outras nem tanto, um mistério que perdura graças a sua tibieza moral e à capacidade de atrair encrenca. Melhor impossível.
Jake Scully passa por um momento de baixas. Depois de ter sofrido uma crise de pânico durante a gravação da cena mais importante de seu novo trabalho, ele volta para casa quase aflito, mas esperançoso, afinal, namora uma mulher linda e que tem por ele genuína devoção. Por esse brevíssimo contato com o protagonista, o espectador já nota estar diante de um sujeito algo vesano, francamente inclinado a dourar a realidade, quiçá um cacoete adquirido depois de anos em frente as câmeras, mas de uma hora para a outra a vida como ela é arromba-lhe a porta e susta-lhe o baile, e ele se vê sem emprego, sem mulher, sem casa e sem brio.
Craig Wasson encarna esse homem quase sem qualidades amenizando-lhe o esmorecimento com um sorriso desarmado, um atributo que vai lhe ser de grande ajuda num futuro bastante próximo. Enquanto isso, ele precisa de uma nova colocação e um teto, e pode conseguir os dois quandoSam, um conhecido com quem já havia trabalhado, também aluno de uma oficina de reciclagem para atores veteranos, lhe oferece pouso numa estranha construção modernista pairando sobre as colinas nos arredores de Los Angeles. É onde Sam, o tipo ensaboado vivido por Gregg Henry, lhe apresenta, através de um telescópio caseiro, a vizinha sensual que dança nua em frente à janela.
É essa mulher tão deslumbrante quanto misteriosa que leva Jake ao torvelinho de emoções que faltava em sua vida, com um exagero que acaba implicando num assassinato e numa incursão ao submundo da indústria de filmes adultos. Antes, ele conhece quem supõe ser a tal exibicionista, com Deborah Shelton numa participação que supera expectativas, e torcemos para eles se acertem, bem como queremos que Jake engate um romance com Holly Body, a atriz pornô que contrata numa tentativa desesperada de solucionar o caso e provar sua inocência. A exemplo do que faz em “Vestida para Matar” (1981), De Palma apela a “Janela Indiscreta” (1954) para além das sequências em que James Stewart (1908-1997) está no apartamento, e leva Wasson e Melanie Griffith a um périplo por LA, com direito a diálogos em que a moça explica em detalhes o que faz e não faz em cena, e ele retruca elogiando-lhe o… sorriso. Eis poesia a de “Dublê de Corpo”.
Lances como os bastidores do pornô soft em cuja gravação Jake e Holly Body se conhecem, filmados pelo próprio De Palma, teriam o condão de empurrar o filme ladeira abaixo, mas como tudo fora milimetricamente pensado, a fotografia de Stephen H. Burum dá a impressão de se tratar de um sonho opresso, durante o qual vivemos com o protagonista suas frustraçoes e suas taras. Às vezes é difícil de acreditar, mas as coisas mais aparentemente tresloucadas seguem um método. Brian De Palma é especialista nisso.
Filme: Dublê de Corpo
Direção: Brian De Palma
Ano: 1985
Gêneros: Drama/Suspense/Erótico
Nota: 9/10