Valores caros à civilização, sem os quais todos já teríamos soçobrado em meio a conflitos armados cada vez mais frequentes, relações íntimas marcadas pelo abuso e pela psicopatia, a justa descrença quanto a alguma evolução, precisam ser permanentemente resgatados para que não nos esqueçamos da nossa humana natureza, desventurada em essência, porém cheia de fantasiosas possibilidades. É o que tentam fazer, a seu modo, Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, os diretores de “Abigail”, um terror ousado, que não se resigna em reproduzir fórmulas.
A personagem-título, uma garota rica e cheia de traumas contra os quais duela num embate com notas de autodestruição, vai parar num cativeiro milimetricamente pensado para recebê-la pelo tempo necessário, até que seus algozes ponham a mão nos cinquenta milhões de dólares do resgate. O roteiro de Guy Busick e Stephen Shields, contudo, vai levando a história para uma zona cinzenta onde nada é o que parece, e aquela menina à primeira vista indefesa e angelical, assume contornos uma fera diabólica, pronta a vingar-se de quem pensou subjugá-la.
A despeito da sufocante ânsia por se destacar em meio à tacanhice e à sobrevalorização do excepcional, do inimaginável, do fabuloso, todos queremos ter a vida o mais normal, o mais comum, até o mais previsível quanto se puder, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, as neuroses evolam-se como o perfume das rosas no primeiro raio de sol e as mágoas, derradeiro refúgio da tristeza, somem como se cansadas de não mais causar dor, reflora a esperança da felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se, no fundo, algum detalhe nefasto indicasse que não a merecemos. A vida — ou o que sobra dela — erode-se por si só, num movimento que avança sem que nada mais se possa fazer além de cada qual tomar seu luto e suas lutas, lançar-se novamente à aventura do existir por outras sendas e tentar finalmente atingir a glória grande ou pequena que não se para nunca de buscar, malgrado a paralisia avassaladora, mas temporária, do sofrimento.
Depois que Abigail é sequestrada, numa operação que desafia até as leis da física, Bettinelli-Olpin e Gillett conduzem seu filme para um suspense de combustão lenta, até que a protagonista se revela dotada dos poderes sobrenaturais que garantem que continue viva e cada vez mais esperta. O enredo se ancora no talento de Alisha Weir, e aos poucos, no de Melissa Barrera, como Joey, a sequestradora com quem a vítima fica por mais tempo, e até o surpreendente desfecho, urdido num emaranhado de subtramas que deságuam numa triste constatação, as duas servem de espelho uma à outra, se repelindo ao passo que também se descobrem mais próximas do que gostariam de admitir. Terror com estilo, muito estilo.
Filme: Abigail
Direção: Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett
Ano: 2024
Gêneros: Terror/Suspense/Comédia
Nota: 8/10