Vencedora da Palma de Ouro em Cannes, a história de amor e mistério mais impactante e bela do cinema contemporâneo está na Netflix Divulgação / Netflix

Vencedora da Palma de Ouro em Cannes, a história de amor e mistério mais impactante e bela do cinema contemporâneo está na Netflix

Identidade é um ativo precioso para Mati Diop. Se em “Atlânticos” (2009), a franco-senegalesa aventura-se a narrar a travessia de um grupo de amigos do Senegal para a Europa num modesto barquinho, deixando o espectador congelado a cada take da vastidão assombrosa do mar e do breu denso a engolir tudo, em “Atlantique” a  diretora concentra-se numa personagem que fica, tão instável quanto quem singra o oceano que empresta o nome à trama, destrinchando o amor impossível que serve de fio narrativo da história.

Agraciado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Atlantique”, desdobramento do curta de dezesseis minutos de uma década antes, junta uma realidade austera ao fantástico, presente em toda a tradição africana, e legitima Diop como uma porta-voz relevante de uma parcela considerável da ancestralidade negra, começando pelo fato de, com este trabalho, ter sido a primeira cineasta afrodescendente a vencer em Cannes. Sutil, mas sem prejuízo da veemência, o roteiro, coescrito com Olivier Demangel, encontra nos diálogos — de onde parte a ação num filme que se preze — tudo de que precisa, sem ter de lançar mão de reviravoltas artificiais para explicar o que quer que seja.

Num grupo de jovens operários da construção civil de Dakar exigem o pagamento depois de semanas de labuta está Souleiman, que já não aguenta mais ser tão aviltado. Ele vai tentar a sorte na Espanha, mas antes marca um encontro com Ada num prédio em ruínas à beira-mar, onde quase acontece a primeira experiência sexual da garota, prometida em casamento a um homem rico. Esse contato inaugural da audiência com o enredo fixa-se em Souleiman e Ada, conferindo destaque a suas personalidades diversas. Enquanto Souleiman é alguém incapaz de resignar-se quando é injustiçado, Ada suporta tudo calada, gancho de que Diop se vale para dar suas alfinetadas no patriarcalismo, ainda mais exacerbado em certas sociedades africanas, sublinhando também a diáfana esperança de Ada quanto a ser feliz no relacionamento oficial, não exatamente por crer que possa vir a amar o noivo, mas pela expectativa de amanhãs menos atribulados. 

Mame Bineta Sane e Ibrahima Traoré conduzem o filme com a retaguarda de um elenco de apoio coeso, e se revezam nas atenções do público, malgrado só ela apareça do começo ao fim. Depois que Souleiman desaparece no mar, lembrando o filme de 2009, o personagem volta em flashbacks ou nas visões da namorada, inclusive na perturbadora sequência em que a suntuosa cama de casal de Ada e Omar, o marido interpretado por Babacar Sylla, pega fogo. Diop contorna a fetichização da pobreza colocando no lugar o debate sobre a paranoia da virgindade da noiva para os muçulmanos, assunto convenientemente esquecido pelo cinema feito na África, por realizadores homens e prosélitos de um mundo arcaico que custa a afundar. 


Filme: Atlantique
Direção: Mati Diop
Ano: 2019
Gêneros: Drama/Fantasia/Mistério 
Nota: 9/10