A obra-prima de Kenneth Branagh, vencedora do Oscar e indicada a mais de 250 prêmios, está na Netflix Divulgação / Focus Features

A obra-prima de Kenneth Branagh, vencedora do Oscar e indicada a mais de 250 prêmios, está na Netflix

A experiência de falar sobre aquilo que se conhece e ama encontra paralelo na universalidade. Esse conceito, inspirado no poema “O rio da minha aldeia” de Fernando Pessoa, publicado em 1946, muito após o falecimento do poeta, serve como base para entender “Belfast”, a memória visceral da infância de Kenneth Branagh na Irlanda do Norte dos anos 1960. Em um país que mal começava a sentir os impactos das divisões religiosas, Branagh traduz em imagens a complexidade de uma infância no meio do caos, em um período turbulento que se prolongaria por mais três décadas.

Como um dos mais notáveis atores contemporâneos, Branagh imprime sem esforço a confusão de um menino de nove anos em um ambiente de intensas disputas entre protestantes e católicos na cidade que dá nome a este filme, um testemunho emocional e histórico. Buddy, personagem que representa o alter ego do diretor e roteirista, ganha o público com lembranças imprecisas, capturadas pelo preto e branco sutil de Haris Zambarloukos. Essas memórias, no entanto, aparecem tingidas por cores vibrantes aqui e ali, evocando aquele tipo de recordação que, apesar de ocultada, desperta inesperadamente, moldando-se na mente como se sempre estivesse à espera de ser revisitada.

Na dedicatória do filme, Branagh expressa que este é para “para quem ficou, para os que partiram, e por todos aqueles que se perderam”. Ao explorar as marcas do verão de 1969, o segundo ano dos Troubles, Branagh relembra as feridas de uma época marcada por enfrentamentos religiosos e políticos na Irlanda do Norte, revelando um cenário de ruas em constante tensão, com portas arrombadas e vidraças estilhaçadas. Nessa vizinhança de Belfast, onde vivem Buddy e sua família, o diretor constrói um delicado mosaico humano, povoado por personagens que, na tela, tornam-se como parentes há muito ausentes, mas inquestionavelmente próximos.

Além de Buddy, interpretado com maestria por Jude Hill, o filme nos apresenta a Ma e Pa, os pais vividos por Caitríona Balfe e Jamie Dornan, que, como muitos, precisam partir para além de seu lar para buscar oportunidades. Dornan, conhecido anteriormente pelo papel em “Cinquenta Tons de Cinza”, mostra aqui um amadurecimento digno de nota, similar ao que exibiu em “O Cerco de Jadotville”. Sua evolução como ator é evidente, deixando para trás a imagem de galã para abraçar desafios autênticos e impactantes, revelando camadas profundas de seu talento.

Com a participação de Judi Dench e Ciarán Hinds, que interpretam os avós de Buddy, o filme torna-se ainda mais memorável. Dench, amiga de longa data de Branagh, traz ao filme uma sensibilidade intensa, especialmente nas cenas em que a violência entre protestantes e católicos invade lares e vidas. Dench e Hinds dão vida aos avós com a gravidade e o carinho que tornam seus papéis fundamentais. Branagh, criado como protestante, expõe em “Belfast” as cicatrizes de uma era de terror e desumanidade que afetou a todos. Em última análise, o filme é um apelo contundente à empatia e uma crítica implacável à ignorância que alimenta divisões, evocando uma resiliência que ecoa em todos os tempos.


Filme: Belfast 
Direção: Kenneth Branagh 
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Coming-of-age 
Nota: 9/10