Tonya Harding é um dos retratos mais cruéis e fascinantes de uma existência turbulenta, marcada pela união de absurdos e grandezas em uma trajetória que jamais se manteve mansa ou estável. Sua vida, interpretada com intensidade em “Eu, Tonya”, confunde limites entre o patético e o heroico, onde o banal da sobrevivência pode atingir tons dramáticos tão ricos quanto uma trama romântica, embora mais sombria e desconcertante.
Em seu percurso, Harding não teve o conforto de se perder em idealizações; ao contrário, sua história foi definida pela brutalidade de enfrentar, desde cedo, um ambiente hostil, criado pela negligência e abuso de quem deveria proteger. Da infância problemática ao casamento conturbado, a trajetória da patinadora desliza por um terreno repleto de angústias, onde as vitórias sobre o gelo foram sempre ofuscadas pelos tropeços de uma vida conturbada.
Dirigido por Craig Gillespie, o filme apresenta a figura emblemática de Harding com um olhar sensível e crítico, que desnuda tanto suas dores quanto a força quase autodestrutiva que impulsionou sua carreira. A narrativa de Gillespie combina um olhar empático com uma crueza que não oculta os aspectos mais ásperos de sua jornada, criando uma obra que não se esquiva das reviravoltas sombrias na busca incessante da protagonista por uma identidade.
As dificuldades são ilustradas como ondas de tragédia que desafiam Tonya a cada passo, forçando-a a resistir e, simultaneamente, submergir na violência que cercava sua vida – desde a toxicidade implacável da mãe até os abusos constantes em seu casamento.
O filme guia o público pelo tormento de Tonya, exibindo a realidade de uma atleta cujos desafios extrapolam o limite físico, entrando no campo psicológico, onde o senso de dignidade e moralidade foi testado até o limite. Harding ascende como uma das grandes figuras do esporte norte-americano nos anos 1980 e 1990, confrontando as barreiras impostas tanto pelo ambiente ao seu redor quanto pelas expectativas sociais.
Apesar da glória esportiva, sua jornada é marcada pela inevitável queda ao abismo do desprezo e da vergonha pública. Ela se ergue e despenca num ciclo incansável, em que a transgressão e o escárnio parecem pairar sobre cada conquista. A história se torna assim um relato quase mítico, mas de uma heroína distorcida, que carrega em cada vitória a sombra de uma derrota iminente.
O roteiro, assinado por Steven Rogers, emprega um recurso interessante: entrevistas fictícias que adicionam uma camada de reflexão, enriquecendo o perfil psicológico da protagonista e de outras figuras centrais. Entre os personagens, Jeff Gillooly, interpretado por Sebastian Stan, desponta como um dos homens que moldaram sua trajetória, envolvendo-a numa relação de amor e violência.
Ao lado dele, LaVona Fay Golden, vivida de forma impactante por Allison Janney, personifica uma figura materna ao mesmo tempo vil e essencial, cuja ambição distorcida a leva a ultrapassar os limites do que seria aceitável, contribuindo para o tumulto na vida da filha, enquanto é, ironicamente, sua única incentivadora. Rogers constrói um cenário onde o espectador é levado a entender, ainda que com horror, o papel fundamental que a mãe desempenhou na formação de Tonya, mesmo que por meio de métodos reprováveis.
Margot Robbie, interpretando Tonya, e Allison Janney, como LaVona, travam embates intensos e emocionantes. Robbie, em uma fase inicial de sua carreira, logo após seu papel de destaque em “O Lobo de Wall Street” (2013), revela uma habilidade notável para capturar as nuances de uma personagem complexa e mal compreendida, muito distante do brilho pop que viria a alcançar com “Barbie” (2023).
Janney, com uma atuação sólida e implacável, ganha o público com uma presença que faz de LaVona uma das antagonistas mais marcantes, ao mesmo tempo cruel e intrigante. A interação entre mãe e filha se torna uma experiência incômoda, mas fascinante, reforçando o impacto de uma relação moldada por conflitos e manipulação emocional, mas onde o laço sanguíneo persiste como uma constante inescapável.
Gillespie pontua a trama com eventos que demonstram as participações de Harding em campeonatos muitas vezes obscurecidos pelo escândalo. A narrativa se intensifica ao alcançar o momento crucial: o Campeonato Nacional de Patinação Artística, em Detroit, 1994, o início de sua queda pública após o polêmico incidente com Nancy Kerrigan. Esse episódio foi apenas um reflexo final de uma vida exposta a pressões que, embora comuns no esporte, em seu caso foram potencializadas por uma constante de fracassos familiares e pessoais.
Em meio ao ápice e à derrocada, “Eu, Tonya” oferece uma crônica brutal e autêntica de uma mulher que viveu à margem das glórias e desilusões americanas, o que desperta reflexões muito pertinentes sobre o preço da fama e as complexidades humanas que, no esporte ou fora dele, continuam a inspirar fascínio e repulsa.
Filme: Eu, Tonya
Direção: Craig Gillespie
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 9/10