Suspense policial, ignorado pela crítica, é o filme indiano mais assistido da Netflix em 2024 Divulgação / Netflix

Suspense policial, ignorado pela crítica, é o filme indiano mais assistido da Netflix em 2024

As produções indianas estão longe de ser unanimidade — e Bollywood jamais deu a mínima para essa constatação. Insuperável na vastidão de tipos humanos que abriga, a Índia, verdadeiro continente dentro da Ásia, se vale do cinema a fim de apresentar ao mundo realidades exóticas, histórias quase absurdas, e “A Melhor Cartada” confirma a regra. O conto fascinantemente realista sobre abuso doméstico e rivalidade entre gêmeas de Shashanka Chaturvedi mistura a narrativa de um romance à primeira vista ingênuo a um thriller policial ancorado na literatura feminina, sem que isso signifique desdenhar da inteligência do espectador.

Chaturvedi permite que cada um alcance as conclusões que julgar apropriadas, revelando parte do enigma na undécima hora e deixando que o resto permaneça sob a bruma de mistério que caracteriza grande porcentagem da indústria cinematográfica indiana. Por baixo da espuma glamorosa, o corajoso roteiro de Kanika Dhillon fixa-se no cotidiano perverso de mulheres pobres ou ricas que lutam contra a opressão de companheiros arrogantes e sádicos, sublinhando em algum momento que a tal sororidade é, em muitos casos, uma quimera. 

“A Melhor Cartada” acompanha a vida de Saumya e Shailee desde a infância em Uttarakhand, norte da Índia, até o florescimento do desejo, inverso para uma e outra. Enquanto Saumya é uma ninfa doce e refrescante, a irmã é a própria encarnação da vamp insaciável, dicotomia muito bem explorada pelo diretor em sequências com as duas ainda crianças disputando a atenção da mãe, ou melhor, com Shailee sempre urdindo intrigas, até ser mandada para um colégio interno em outro estado. Já adulta, ela regressa, e toma ciência do namoro de Saumya e Dhruv Sood, filho de um político influente de Haryana, um sedutor inveterado e que não admite ficar por baixo nunca, a fina flor do atraso patriarcalista que o sistema de castas exacerba. Esse é o gancho de que Chaturvedi se vale na intenção de virar o enredo para o evento criminoso que se alonga pelo segundo ato, em que Kriti Sanon incorpora Saumya e Shailee, dois espíritos que praticam a liberdade em que creem, até que a tentativa de homicídio contra uma delas perpetrada por Dhruv cai no colo de Vidya Jyothi Kanwar, a detetive-advogada mais durona de Uttarakhand. 

O julgamento de Dhruv é uma boa ocasião para que se analise o talento dos três com o devido peso. Sanon se sai bem ao interpretar duas personagens antagônicas, uma das mais difíceis tarefas para um ator, e o playboy de Shaheer Sheikh encanta e repugna na medida certa. Porém o show quem dá mesmo é Kajol e sua capacidade de sintetizar emoções muitas vezes sem a necessidade de palavras, contando apenas com um rosto naturalmente belo e expressivo, feito para o ecrã e valorizado pela fotografia enxuta de Mart Ratassepp. Emulando as grandes divas do cinema ocidental, um eterno fetiche bollywoodiano, Kajol é a Sophia Loren de sua terra. Sendo muitas mais.


Filme: A Melhor Cartada
Direção: Shashanka Chaturvedi
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Suspense/Mistério/Policial 
Nota: 8/10