Em qualquer abordagem séria de “A Náusea”, é fundamental que se estabeleça, desde o início, um recorte preciso: o romance, em si, como manifestação artística e filosófica, merece ser analisado à parte das discussões que permeiam a vasta trajetória de seu autor, bem como das intricadas questões de sua biografia ou do conjunto de sua filosofia existencialista. O foco aqui, portanto, recairá sobre a obra como experiência estética singular, um marco da literatura, cujas inquietações vão muito além de um simples tratado filosófico transposto em forma de narrativa. Como aponta Iris Murdoch em “Sartre: Racionalista Romântico”, o valor de “A Náusea” está, sobretudo, na capacidade do texto de evocar, por meio de uma linguagem densa e perturbadora, a sensação de alienação do ser. Distante de debates sobre a persona de Sartre, trata-se de olhar a obra como uma metáfora viva da condição humana, onde a existência se impõe em sua crueza antes mesmo da reflexão filosófica.
A construção da obra passou por um processo de depuração que reflete a tensão entre filosofia e literatura. A primeira versão do manuscrito, conforme os relatos de Simone de Beauvoir, inclinava-se demasiadamente para o discurso filosófico, assemelhando-se mais a um tratado do que a um romance. Beauvoir, ao ler esse rascunho inicial, reconheceu o potencial da obra, mas sugeriu que, se Sartre desejava que o texto fosse publicado como uma obra de literatura, seria necessário torná-lo menos explícito em suas abstrações teóricas e mais centrado na experiência subjetiva e existencial do protagonista. A intervenção de Beauvoir foi crucial, pois o aconselhou a focar mais na encarnação do pensamento por meio da vida e das percepções de Roquentin, o que levou Sartre a refinar o romance, transformando a angústia existencial em sensações concretas, de modo que a reflexão filosófica emergisse das situações cotidianas e da relação do personagem com o mundo. A força do livro reside justamente na maneira como Sartre dá corpo ao seu pensamento, ao invés de simplesmente verbalizá-lo, algo que só foi plenamente alcançado após esse diálogo inicial com Beauvoir. O romance, então, distanciou-se do discurso acadêmico e mergulhou nas angústias humanas universais, aproximando-se do público literário ao transformar a náusea de Roquentin em uma vivência palpável, e não apenas um conceito abstrato.
Inicialmente, Sartre intitulou seu romance como “Melancolia”, um nome que refletia a atmosfera de desolação e alienação presente ao longo da narrativa. No entanto, o editor aconselhou a mudança para “A Náusea”, título que melhor encapsulava a experiência visceral de desgosto e repulsa que o protagonista sente diante da contingência e da absurda gratuidade do mundo. Essa alteração não foi meramente estética: a palavra “náusea” amplifica a sensação de desconforto existencial que permeia a obra, um sentimento que vai além da tristeza melancólica para expressar uma aversão física e emocional em relação à própria existência. Tal título foi decisivo para imprimir o tom e o impacto da narrativa, aproximando-se da filosofia existencialista que estava por emergir com força.
“A Náusea” marca um ponto crucial na carreira literária e filosófica de Sartre, sendo considerado por muitos o romance inaugural do existencialismo em sua obra. Embora o filósofo já tivesse esboçado algumas de suas ideias em escritos anteriores, foi nesse romance que elas ganharam forma literária, servindo como uma introdução ao seu pensamento posterior, sistematizado em “O Ser e o Nada”.
O romance não apresenta o existencialismo como um sistema teórico bem definido, mas como uma vivência: a existência é sentida na pele, de forma angustiante, e a liberdade humana emerge como uma espécie de condenação, uma realidade inescapável. Este livro é o laboratório de Sartre, onde os conceitos que moldariam sua obra filosófica são testados na ficção, através da subjetividade de um protagonista que encarna os dilemas centrais do ser-no-mundo.
O enredo é relativamente simples, mas a profundidade está no modo como as experiências banais do protagonista são carregadas de significados filosóficos. Antoine Roquentin, um historiador que se encontra na pequena cidade de Bouville, está escrevendo um livro sobre o marquês de Rollebon, uma figura do século 18. Sua vida é marcada pela monotonia: longas caminhadas pela cidade, visitas à biblioteca e encontros casuais com personagens que pouco o afetam. No entanto, ao longo dessas atividades rotineiras, Roquentin começa a ser tomado por um sentimento crescente de desconforto e estranheza em relação ao mundo ao seu redor. Essa sensação, que ele nomeia de “náusea”, surge de sua percepção da contingência das coisas, da falta de propósito e sentido em tudo o que existe. A experiência aqui é uma revelação desconcertante: ele se dá conta de que a existência é completamente gratuita, não há essência ou justificativa para o ser.
O romance está estruturado como um diário, o que permite ao leitor acompanhar sua progressiva queda na náusea, à medida que ele descreve minuciosamente suas reações e pensamentos. O uso do diário é estratégico, pois reflete o caráter fragmentado e subjetivo da experiência existencial: não há uma linearidade clara, mas uma série de momentos desconexos que, no fim, compõem a jornada de autorreflexão do protagonista. Sartre faz com que o leitor sinta o peso da liberdade individual, pois Roquentin, ao confrontar a ausência de sentido do mundo, percebe que está condenado à liberdade. Ele não pode fugir das suas escolhas e da responsabilidade por suas ações, algo que torna sua existência ao mesmo tempo um fardo e uma possibilidade ilimitada.
A narrativa também destaca a relação de Roquentin com Anny, uma ex-amante que representa uma tentativa fracassada de conexão emocional. Anny, assim como outras figuras da vida do protagonista, parece desconectada, incapaz de preencher o vazio que o personagem sente. Essa ausência de relações significativas e a impossibilidade de encontrar um sentido no passado o levam a abandonar seu trabalho de pesquisa histórica e a aceitar a condição absurda da existência. No final, ele parece vislumbrar uma forma de transcender sua náusea: ele concebe a ideia de que a criação artística poderia ser uma saída, uma maneira de dar forma e sentido à vida, mesmo que esse sentido seja temporário e construído. A náusea, portanto, não é apenas um estado de desesperança, mas também o impulso para uma reflexão profunda sobre a liberdade e a possibilidade de criar algo novo. Sartre, nesse sentido, oferece uma resposta literária ao problema do absurdo que seria retomada por outros escritores existencialistas, como Albert Camus.
O acaso e a contingência são temas centrais, permeando cada reflexão e experiência do protagonista. Ao longo do romance, ele se depara com a insuportável percepção de que tudo ao seu redor é gratuito e desprovido de essência ou propósito. Os objetos, as pessoas e os eventos que antes pareciam ter algum sentido revelam-se absurdamente contingentes. A raiz de sua náusea está nessa percepção de que as coisas simplesmente são, sem qualquer justificativa prévia ou finalidade última. Isso faz com que ele se veja diante de um universo indiferente e sem qualquer ordem intrínseca, o que o força a questionar o próprio significado de sua existência.
Essa percepção do acaso se reflete no projeto inicial do personagem central: a biografia do marquês de Rollebon. A biografia, por definição, é uma tentativa de dar coerência e sentido ao passado de uma pessoa, organizando fatos e eventos em uma narrativa linear e significativa. No entanto, à medida que a náusea se intensifica, Roquentin começa a enxergar seu trabalho com desgosto. A vida do marquês, como qualquer outra, não tem um sentido inerente que ele possa capturar ou imortalizar. Ela é simplesmente uma sequência de acontecimentos que ocorreram sem um motivo maior, e o projeto biográfico, com seu esforço de subordinar a vida ao real, ao já acontecido, torna-se fútil aos olhos do protagonista.
Essa mudança de perspectiva leva Roquentin a abandonar a ideia de continuar sua biografia, e, em vez disso, ele passa a contemplar um novo projeto: a criação de uma obra de ficção. Esse movimento, de abandonar a história para abraçar a literatura, não é apenas uma mudança de foco profissional, mas um signo profundo de liberdade. Diferentemente da história, que está atrelada ao que já aconteceu, à factualidade rígida do passado, a ficção representa a liberdade criativa, a capacidade de inventar e dar forma ao que ainda não existe. Como Sartre enfatizaria em suas obras filosóficas, o ser humano está condenado a ser livre, e essa liberdade se manifesta na capacidade de transcender a realidade dada, criando novos mundos e novos significados. A literatura, nesse sentido, torna-se um ato de resistência ao absurdo da existência.
Ao abandonar a biografia e optar pela ficção, Roquentin reconhece que a literatura não está subordinada ao real; pelo contrário, ela transcende o real e permite que o indivíduo exerça sua liberdade em sua forma mais pura. Isso marca uma mudança crucial no romance: o protagonista, que até então era tomado pela náusea diante da gratuidade da existência, começa a vislumbrar uma possibilidade de ação criativa. Esse projeto de ficção, que ele apenas esboça no final do romance, não é uma simples escolha estética, mas uma tentativa de dar um novo significado à vida, um significado que ele próprio pode construir, sem estar atado às restrições do passado ou à lógica contingente dos acontecimentos.
A mudança de projeto histórico para o projeto literário não é apenas uma decisão pragmática, mas simboliza uma virada existencial. O personagem deixa de buscar sentido no passado, naquilo que já foi, e passa a olhar para o futuro, para aquilo que pode ser criado. Essa é a resposta de Sartre ao dilema do absurdo: o ser humano, mesmo diante da falta de sentido do mundo, tem a capacidade de inventar seu próprio sentido, de construir narrativas que, embora não sejam impostas pela realidade, são fruto de sua própria liberdade criativa.
À medida que Antoine Roquentin abandona o projeto de escrever a biografia do marquês de Rollebon, ele percebe que não é a vida de outra pessoa que precisa desvendar, mas a sua própria. A busca por sentido que ele inicialmente atribui à figura histórica é, na verdade, um espelho de sua própria crise existencial. O que Roquentin encontra ao longo de “A Náusea” não é um entendimento profundo do marquês ou da história, mas de si mesmo e da condição humana. Ele se depara com uma verdade inquietante: a identidade não é algo fixo ou essencial. Ao invés disso, o eu é fluido, desprovido de qualquer essência anterior e, tal como o mundo que o cerca, construído a partir da liberdade radical do indivíduo.
Esse processo de autodescoberta reflete uma das críticas mais contundentes que Sartre desenvolveria mais tarde em “O Ser e o Nada”: a ideia de que as pessoas muitas vezes se aprisionam em papéis ou máscaras que elas mesmas criam, transformando-se em personagens de suas próprias vidas. Essa tendência, segundo Sartre, é uma forma de “má-fé” (mauvaise foi), um mecanismo psicológico pelo qual os indivíduos se convencem de que possuem uma identidade fixa, como se suas escolhas e ações fossem determinadas por algo além de si mesmos — seja pela sociedade, pela história ou por uma suposta essência interior. Roquentin, ao tentar construir uma narrativa linear e coesa sobre a vida do marquês, estava, na verdade, buscando uma ilusão de sentido e estabilidade que ele próprio não possuía.
A crítica de Sartre, e de Roquentin por extensão, atinge aqueles que se refugiam em papéis socialmente aceitos para escapar da responsabilidade de suas escolhas. As pessoas que se tornam “personagens de si mesmas” são aquelas que aceitam as imposições e expectativas externas como sendo sua verdadeira essência, negando a liberdade que possuem de se reinventar constantemente. Elas assumem uma identidade, como um ator que veste um figurino, e acabam acreditando que essa máscara é quem realmente são.
Em “O Ser e o Nada”, Sartre elaboraria essa crítica de maneira sistemática, argumentando que viver de acordo com papéis preestabelecidos é uma forma de se esconder da liberdade angustiante que caracteriza a existência humana. Ao desempenhar um papel — seja o de marido, esposa, intelectual, profissional de sucesso — o indivíduo se convence de que há algo inerente a ele que o define, quando, na verdade, está o tempo todo se distanciando de sua verdadeira condição de ser livre.
Roquentin experimenta a náusea justamente porque começa a perceber a artificialidade desses papéis. Ele se dá conta de que o projeto de escrever sobre o marquês não é apenas um fracasso literário, mas um esforço fútil de dar sentido a algo que, em última análise, não tem sentido. Ele percebe que a história é meramente um reflexo contingente de eventos passados, e que buscar um significado profundo em outra vida, em vez de enfrentar sua própria existência, é uma forma de fuga. O colapso de seu projeto de pesquisa simboliza o colapso de sua ilusão de encontrar sentido no externo. A verdadeira epifania de Roquentin não é sobre o marquês de Rollebon, mas sobre ele mesmo: ele é livre, e essa liberdade implica que não há essência ou propósito anterior a suas escolhas. Ele não pode se refugiar em uma identidade fixa ou em um objetivo externo para evitar o confronto com sua liberdade.
O livro não apenas introduz os principais temas do existencialismo, mas também antecipa o desenvolvimento posterior de Sartre sobre a má-fé e a liberdade. O percurso de Roquentin, de historiador frustrado a aspirante a romancista, não é meramente uma questão de mudança de profissão, mas de transformação existencial. Ele deixa de ser um personagem de sua própria vida, preso à contingência e ao passado, e começa a vislumbrar a possibilidade de criar algo, de ser livre para construir sua própria narrativa.
Na história que Sartre nos oferece as personagens não possuem a profundidade e a complexidade dos indivíduos que encontramos na vida cotidiana; elas servem, essencialmente, como veículos para as ideias filosóficas que Sartre deseja explorar. Ainda em um estágio inicial de sua produção literária, o autor carece da sutileza estilística necessária para criar personagens realistas, preferindo delinear arquétipos que representam conceitos existenciais. Um exemplo notável é o Autodidata, uma figura que parece mais uma encarnação da obsessão intelectual do que uma pessoa real. Difícil de imaginar caminhando pelas ruas, o Autodidata é construído como uma caricatura do erudito que busca compulsivamente o conhecimento, seguindo uma ordem rígida e artificial, determinada pela leitura alfabética de todos os livros de uma biblioteca. Sua rigidez intelectual reflete sua tentativa de controlar e dar sentido a um mundo caótico, mas, ao mesmo tempo, revela a artificialidade de sua abordagem. Ele é uma personificação da “má-fé”, vivendo uma existência enrijecida por suas ideias e negando sua liberdade ao tentar encaixar o vasto e fluido conhecimento humano dentro de uma estrutura mecânica e previsível. A superficialidade do Autodidata como personagem reflete, assim, a falta de verossimilhança de muitas das figuras da obra, que mais se assemelham a ilustrações conceituais do que a seres humanos tridimensionais.
Anny é uma personagem que encarna a busca pelo valor absoluto de cada instante, vivendo com uma intensidade que, paradoxalmente, a impede de se desenvolver como pessoa. Para ela, a experiência de cada momento deve ser maximizada, explorada ao seu limite, o que a faz negligenciar uma das mais fundamentais tarefas da vida: o processo de se transformar, de se tornar algo maior e melhor ao longo do tempo. A obsessão com o instante, com a tentativa de capturar sua plenitude, acaba por ser um apego disfarçado à eternidade. Ao querer vivenciar uma espécie de eternidade em cada instante, Anny se priva da continuidade necessária para uma existência significativa.
Como Sartre sugere por meio de sua personagem, viver intensamente o momento presente implica, de modo paradoxal, uma perda de perspectiva sobre a história pessoal que se desenrola ao longo do tempo. Quem se entrega exclusivamente ao instante esquece que a vida é uma sequência, uma narrativa, onde cada escolha e cada momento constrói algo maior. Ao se fixar no presente absoluto, Anny sacrifica o futuro e a possibilidade de se tornar outra pessoa, esquecendo que a existência é, fundamentalmente, uma sucessão de instantes conectados que formam uma história. E, ao perder essa noção de continuidade, ela acaba por se perder em uma existência fragmentada, incapaz de compreender que o ser humano é mais do que cada instante isolado, mas sim a somatória de seus momentos e transformações.
O encontro com a arte transforma o protagonista. A decisão de escrever um romance não é apenas um ato criativo, mas também uma escolha ética e existencial, uma forma de transcender o absurdo da vida através de algo que perdura, que será “vivo para sempre”. Ao escolher a criação artística, Roquentin opta por dar à sua própria vida o sentido que ela, de si mesma, não possui, e, com isso, a narrativa se encerra com uma abertura para a liberdade e para a possibilidade de superação do vazio existencial.
Embora o autor tenha, posteriormente, revisitado suas ideias e afirmado que esse desfecho era uma idealização da juventude, reconhecendo que a arte não teria o poder de salvar ninguém, “A Náusea” permanece como um testemunho essencial da relação entre arte e liberdade. A obra, em sua busca por sentido em um mundo repleto de absurdos, sugere que a criação artística, mesmo que não ofereça uma salvação definitiva, é um poderoso instrumento de libertação. Através dela, o indivíduo pode transcender as limitações impostas pela realidade e encontrar, ao menos temporariamente, um espaço onde o caos pode ser ordenado e a existência, reimaginada. A narrativa não apenas revela o desespero da condição humana, mas também aponta para a capacidade da arte de servir como um farol de esperança, um meio de resistência contra a opressão do cotidiano e uma forma de afirmar a liberdade de ser e criar em um mundo que muitas vezes parece desprovido de sentido. O livro se encerra com um lembrete poderoso: a busca pela liberdade através da arte, ainda que idealizada, permanece uma jornada significativa e necessária, refletindo a luta contínua do ser humano para encontrar sua voz em meio à náusea da existência.