Sonhos medievais de uma mente contemporânea

Sonhos medievais de uma mente contemporânea

Não adianta contemporizar. Hoje é sábado. Dia de enforcamento. Diversão garantida para toda a família. Com exceção dos menorzinhos que devem ser poupados de agitamento em tão tenra idade. A morte é feia. A cara da morte é feia. Puro estado de agitação e de desespero. Os olhos saltando pelas órbitas. A saliva presa nos cantos da boca. O som da lapada. A lapada da corda testando a anuência do corpo. O último suspiro, o último e desafinado suspiro em dó menor de uma traqueia fraturada. O inconveniente filete de lágrima a percorrer o longo desfiladeiro de um rosto aduncado pelas agruras da vida. Um organismo morto-vivo que se debate como uma galinha decapitada, numa coreografia estapafúrdia, espetaculosa e plenamente compatível com o afã do desatamento dos próprios nós. Eu. Tu. Ele. Nós. Vós. Eles. Todos apinhados como um rebanho no átrio da praça pública, aguardando as execuções do dia. Nada como um efeito manada para explicar tamanha barbárie. O final dos tempos promete. A lista dos condenados é que anda um tanto escassa. O que não deixa de interferir nos negócios. Previsão de meia hora de execuções, se muito. A fila é pequena. Uma cientista que foi diagnosticada bruxa. Uma prostituta grávida de gêmeos. Um retardado mental que gatinha de quatro enquanto goza. Um jovem efeminado possuído pelo demônio. Um andarilho com destino a Roma. Um paralítico sem rumo certo na vida.  Pedro. Um preto. As pedras. As pedras do caminho. Um frei obeso e sifilítico. Uma jovem que lê livros e que sabe contar os numerais. No mais, um pouco mais do mesmo. As pessoas se acotovelando nas fileiras da frente, em busca do melhor ângulo para apreciar o espetáculo da violência. O tempo passando. Vira-latas trepando. Leitões chafurdando. Um gato escapando com um peixe preso na mandíbula. Pulgas de ratos em polvorosa, a chupar, em festa, a carne humana. A peste. A peste negra. O branco dos olhos a rodopiar na face grotesca dos condenados. Jovens mancebos gastando ordenados com veias, vinhos, cancros e apostas. A bosta animal. O mijo humano. A chuva. A lama. O lama que não vai entrar afinal nessa história. A histeria. O grande público pisoteando o curral lamacento. O pressentimento da morte que logo se materializa nos corpos amontoados, recolhidos pela colossal carroça oficial do estado. Não sei se de fato existe um estado. Apesar de tanto mal, arvorada na hipocrisia, a sociedade segue se organizando aos poucos. Quem nunca viu um enforcamento coletivo não sabe o que está perdendo. Tudo isso faz parte de uma política de cancelamentos. De certo que ninguém ainda tinha concebido exterminar indivíduos numa fogueira ou numa guilhotina. Em matéria de promover a justiça terrena, há muito o que fazer. Desfazer em pesadelos reiterados — por exemplo — o pouco que ainda nos resta de humanidade.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.