Na floresta de Elwynn reúnem-se cavaleiros, fadas, bruxas e caçadores, todos desfrutando de uma harmonia impossível de ser alcançada em qualquer outro lugar que não fosse Azeroth, o planeta fictício de “World of Warcraft”, o jogo de interpretação de papéis de alta fantasia (RPG) desenvolvido pela Blizzard Entertainment e abraçado por nerds de Europa, França e Bahia. Entre esses seres encantados, estava o detetive Ibelin, um tipo nórdico, de longos cabelos loiros, alto e forte, que se empenhava em desvendar casos tão misteriosos que a imaginação humana sequer pode conceber.
Como tudo nessa terra mágica tem dois lados, por trás de Ibelin estava Mats Steen (1989-2014), um norueguês de vinte e poucos anos, portador da distrofia muscular de Duchenne, um calvário sem fim a limitar-lhe os movimentos, mas não a urgência de viver e desejo de ser útil, de ser querido e lembrado. Uma boa parte da curta existência de Mats está em “A Extraordinária Vida de Ibelin”, o documentário em que Benjamin Ree alia poesia e dor ao descrever esse universo paralelo de seu biografado, alguém que precisou entender desde muito cedo que estar no mundo era realmente uma causa perdida — mas não sem luta e alguma lhaneza.
Como se já pressentissem que teriam pouco tempo com o filho, Robert e Traude Steen passaram a registrar todos os momentos com Mats, desde antes de seu nascimento, em 3 de julho de 1989. Ree seleciona imagens dos últimos dias de gravidez de Traude, e aos poucos os dois foram percebendo que aquele garotinho esperto perdia a coordenação motora com mais e mais frequência, além de não conseguir mais tomar banho sozinho e apresentar dificuldades para engolir. O diagnóstico de Duchenne veio foi recebido como uma bomba, não pela doença em si, mas por saberem que Mats não seria nunca capaz de ter uma carreira (o que aconteceu mesmo), fazer amigos ou apaixonar-se.
Nessa hora, o diretor vira a chave de seu filme e apresenta-nos um Mats surpreendentemente ativo, despertando a benquerença de todos quantos cruzavam seu caminho, em Azeroth. Como uma projeção do que queria vivenciar em sua configuração humana, no “Warcraft” Mats era o amigo dos conselhos excelentes, o galanteador, o mulherengo, e foi fazendo a tal diferença na história de seus consortes virtuais. Gente de carne e osso a exemplo de Xenia, a Reiki, uma dona de casa dinamarquesa cujo filho, Mikkel, portador do transtorno do espectro autista e também usuário do jogo, não a suportava. Mats conseguiu o improvável milagre de reaproximar mãe e filho, que agora é, quem diria, popular na escola.
A paixão avassaladora de Ibelin por Rumour, avatar de Lisette Roovers, uma garota holandesa que acabou deprimida quando forçada a parar com o jogo depois que seu desempenho escolar degringolou, é o filme dentro do filme. Ree trata de modo digno a amizade de Mats e Lis, um dos pontos altos das mais de 20.000 horas de interações do garoto no “Warcraft”, sem que jamais se vislumbre um fumo de deboche ou condescendência ou vitimismo. A defesa de “Warcraft” como uma ferramenta de conexão para além do cibernético sustentada pelo diretor é, portanto, goste-se ou não, mais que razoável. Mats Steen que o diga.
Filme: A Extraordinária Vida de Ibelin
Direção: Benjamin Ree
Ano: 2024
Gêneros: Documentário/Biografia
Nota: 8/10