Casamentos nascem da paixão, solidificam-se com o amor e se fortalecem nas dificuldades. Com a chegada dos filhos, um casal precisa abrir mão de pequenas alegrias que antes eram essenciais para que a relação não se consumisse em si mesma, e aí começam os problemas. Os rebentos crescem, ansiando por liberdade, por lugar no mundo, por coisas que os pais, por mais devotados que venham a ser, talvez nunca lhes possam dar, e tudo entra numa espiral de insânia e anômala beleza que há quem diga, não sem razão, é necessário uma magia qualquer para restaurar a ordem. É o que faz o protagonista de “Quem Vê Cara”, outro dos bons trabalhos de Beto Gómez, sem dúvida um dos grandes nomes do cinema mexicano hoje. O roteiro de Charlie Barrientos e Aldeni Fraga investe no fantástico para contar os tormentos de uma família, arrastada para o caos mais absoluto depois que o pai resolve apelar ao sobrenatural para amenizar as tantas diferenças entre ele, a esposa, uma criança e dois adolescentes, o que, claro, os lança num abismo que só não os engole porque trata-se de uma comédia.
Luis Villareal tem um jornal para chamar de seu, mas não sabe como se comunicar com aqueles que moram sob seu teto. Num feriado, ele e Laura vão com os filhos, Dante, Mariana e Zoe, a um museu onde se depara com a estátua do deus inca dos sonhos e dos desejos. Enquanto Laura se desdobra para tentar manter a prole unida, num esforço hercúleo e vão para separar Mariana do telefone, tirar Dante de uma letargia patológica, agravada pelo consumo de maconha, e tranquilizar a pequena Zoe, neurastênica como o pai, Luis perde-se em elucubrações acerca do real poder da divindade, cujo nome, impronunciável, torna-se a primeira piada do enredo. Quando decide, afinal, testar se o tal ídolo realmente pode atender sua prece, ele clama por conhecer os anseios mais secretos de seus parentes, o que acaba implicando a troca de corpos e personalidades que se estende até o desfecho, em que Gómez tira todo proveito que consegue de seu ótimo elenco, desenvolvendo a premissa da angústia essencial de Luis, que se espraia de seus pensamentos para a ação e daí para o caos. Bruno Bichir capta essa urgência de transformação de seu personagem, contando com a sempre ótima Mariana Treviño, ora dando azo a respiros cômicos que obedecem a uma certa matemática narrativa, ora revestindo Laura de vida própria, também ela dedicando-se a compreender sua parte na metamorfose do marido. Com um pé em Almodóvar, a fotografia de Michelle Castro galvaniza o sarrabulho de Luis, Laura e sua prole, deixando ainda mais familiar aquele acerto de contas tão impensado.
Filme: Quem Vê Cara
Direção: Beto Gómez
Ano: 2024
Gênero: Comédia
Nota: 8/10