Entre som e fúria: o eco indomável de William Faulkner

Entre som e fúria: o eco indomável de William Faulkner

O título de “O Som e a Fúria”, retirado de “Macbeth” de Shakespeare, reverbera com uma ressonância que transcende a simples menção a uma fala de uma das maiores tragédias da literatura inglesa. Na peça, o solilóquio do personagem expressa o vazio e a insignificância da vida, cheia de ruído, caos e irracionalidade, o que se ajusta com precisão ao núcleo do romance de William Faulkner. Mais do que uma citação ornamentada, essa escolha revela a visão existencial de Faulkner, especialmente quando confrontamos a presença do personagem Benjy, o “idiota” cujo relato abre o livro. Para Benjy, o mundo é incompreensível, disforme, um espaço em que sons, fúria e desordem se misturam sem significado — uma metáfora poderosa da própria condição humana.

Se, em Benjy, percebemos uma leitura imediata do título, Jason, por outro lado, é o coração sombrio do romance. Em sua figura, a maldade assume contornos viscerais e cruéis. Jason é frio, mesquinho, obcecado pelo controle e pelo poder que nunca possuiu. Sua tirania doméstica, marcada por um ódio corrosivo, o coloca entre os personagens mais maldosos da literatura moderna, em uma escala que rivaliza com figuras shakespearianas, como Iago em “Otelo”. No universo de Faulkner, Jason não é apenas um vilão; ele é um produto do declínio do sul pós-bélico, da decomposição de valores, uma figura que encarna o pior da humanidade em uma terra devastada.

William Faulkner
O Som e a Fúria, de William Faulkner (Companhia das Letras, 376 páginas)

Faulkner, cuja biografia brevemente entrelaça aspectos da experiência histórica e social do sul dos Estados Unidos, nasceu em 1897, no Mississippi, região que o marcou profundamente e onde passaria a maior parte de sua vida. Seu olhar atento à decadência do sul, a um passado glorioso que se esfarela, permeia todas as suas obras. Após uma juventude inquieta e uma breve passagem pela Primeira Guerra Mundial, Faulkner emergiu como um dos maiores autores do século 20, moldando sua prosa complexa, densa, com camadas de significados e uma estrutura narrativa inovadora. Essa inventividade está em plena exibição em “O Som e a Fúria”, onde quatro narradores nos oferecem, a partir de perspectivas distintas, a mesma história.

“O Som e a Fúria” acompanha o declínio da outrora nobre e influente família Compson, situada no sul dos Estados Unidos no início do século 20. Dividido em quatro partes, o romance narra a história a partir de múltiplos pontos de vista, mostrando o impacto da queda da família e suas consequências emocionais e psicológicas. O primeiro episódio é narrado por Benjy, o filho caçula e mentalmente incapacitado dos Compson, cuja percepção fragmentada do tempo mistura passado e presente, refletindo o caos da família. Através de suas lembranças e impressões, vemos a degradação dos Compson, especialmente a relação com sua irmã Caddy, cuja promiscuidade e eventual abandono familiar simbolizam a perda da pureza e a ruína da linhagem. O segundo episódio é narrado por Quentin, o filho mais velho e emocionalmente instável, cuja obsessão pelo passado, pela honra da família e por sua irmã Caddy o leva a um fim trágico. A sua parte é marcada por um fluxo de consciência angustiado, onde o tempo se torna uma entidade opressora, refletida na sua tentativa de destruir o relógio em um ato simbólico de rejeição ao inevitável.

O terceiro episódio traz Jason, o terceiro irmão, cuja crueldade e amargura tornam-no uma das figuras mais malévolas da literatura de Faulkner. Jason é o responsável pelas finanças da família e controla tiranicamente os poucos recursos que restam. Sua ganância e desprezo pelos outros, especialmente por sua sobrinha Quentin, filha de Caddy, intensificam o clima de destruição da família. O quarto e último episódio é narrado em terceira pessoa e se centra na empregada negra Dilsey, uma figura de resiliência e moralidade.

Enquanto a família Compson se despedaça, Dilsey, representante dos valores mais humanos e piedosos, permanece firme. No domingo de Páscoa, ela assiste a um sermão na igreja que reafirma sua fé, tornando-se o contraponto de esperança e redenção em meio à decadência dos patrões. O espaço da trama é profundamente marcado pelas tensões raciais e pelas tradições decadentes do Velho Sul. A narrativa de Faulkner revela não apenas o fim de uma família, mas também a desintegração de um modo de vida, onde o tempo e o passado se entrelaçam de maneira irremediável, selando o destino trágico dos Compson.

Essa técnica de múltiplos narradores, presente em muitos de seus romances, reforça a complexidade da obra e a fragmentação da experiência. Faulkner não apenas conta uma história, ele a desconstrói, reconfigurando-a por meio de vozes que raramente coincidem em suas interpretações dos fatos. Essa multiplicidade de vozes e versões confere ao romance uma profundidade quase arqueológica, em que o leitor precisa cavar, camada por camada, para compreender a verdade por trás da trama.

Interessante notar que muitos dos personagens de “O Som e a Fúria” tiveram suas raízes em pequenos contos escritos por Faulkner anos antes, algo que a crítica literária frequentemente negligencia. Personagens e temas esboçados nessas histórias curtas foram ampliados e explorados de maneira mais profunda e trágica no romance, sugerindo que uma leitura mais atenta desses contos ajudaria a iluminar o universo faulkneriano.

A crítica francesa, sempre à frente nas inovações literárias, foi quem primeiro celebrou a genialidade de Faulkner. Autores como Jean-Paul Sartre e Maurice Blanchot reconheceram rapidamente as qualidades do escritor sulista, enquanto a crítica norte-americana ainda hesitava em acolhê-lo. Essa recepção precoce na França preparou o caminho para que Faulkner fosse reconhecido em seu próprio país como um dos maiores romancistas de sua geração.

Seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1950, permanece até hoje um farol de esperança. Ao proclamar que “o homem não apenas sobreviverá, mas prevalecerá”, Faulkner ofereceu uma mensagem de resiliência em um mundo assolado por guerras e catástrofes. Suas palavras ecoam com vigor nos dias de hoje, quando a humanidade enfrenta novas crises globais, sugerindo que, por mais sombria que seja a realidade, há sempre uma centelha de esperança.

“O Som e a Fúria”, sem dúvida, é o grande romance moderno dos Estados Unidos, e é inevitável a comparação com James Joyce. Ambos os autores revolucionaram a forma e o conteúdo da narrativa literária. Se Joyce, em “Ulisses”, leva o leitor a uma jornada épica através de um único dia em Dublin, Faulkner faz o mesmo em uma pequena cidade do sul dos EUA. A estrutura temporal fragmentada, a exploração das profundezas da consciência humana e a complexidade de suas narrativas interligam esses dois gigantes literários.

O episódio de Quentin Compson, um dos narradores de “O Som e a Fúria”, é frequentemente comparado a “O Retrato do Artista Quando Jovem” de Joyce. Quentin é um jovem intelectualmente atormentado, incapaz de lidar com o peso do passado e com a decadência de sua família. Sua tentativa de fuga através da morte – ele se suicida no final de sua narrativa — espelha o desespero que permeia o modernismo de Joyce, no qual o heroísmo é uma busca condenada à frustração.

Além de suas semelhanças estruturais, tanto Faulkner quanto Joyce enchem suas obras de referências mitológicas e bíblicas. No caso de Faulkner, as alusões à Bíblia são mais frequentes, traçando paralelos entre o declínio moral de seus personagens e as narrativas sagradas. Em “O Som e a Fúria”, o colapso da família Compson ressoa com o pecado e a queda, temas bíblicos recorrentes.

Muitos sabem que o título do romance vem de “Macbeth”, mas poucos reconhecem que ele se refere diretamente a Benjy. Para Benjy, o mundo é um caos indistinto, confuso, “cheio de som e fúria”, como diz o próprio Macbeth. O que para ele é uma massa incompreensível de estímulos, sem forma ou significado, reflete a impotência da condição humana diante do tempo e do destino.

A trajetória de Quentin culmina nesse mesmo vazio. Em seu último dia de vida, ele quebra o relógio, um gesto simbólico que destrói a tirania do tempo sobre sua existência. Seu desejo incestuoso pela irmã e sua obsessão com a glória perdida do Velho Sul o consomem, levando-o a uma angústia que só encontra alívio na morte. A vida, para Quentin, é tão desprovida de sentido quanto o discurso de Macbeth: uma marcha inexorável para a inutilidade.

Por outro lado, Jason, em seu egoísmo mesquinho, contrasta profundamente com a personagem de Dilsey, a empregada negra dos Compson, que encarna os valores de compaixão e resistência. No quarto episódio do livro, Faulkner utiliza um narrador onisciente, tornando a trama mais clara e focada em Dilsey. Ela vai a um culto e ouve um sermão que exalta o amor e a compaixão, valores que representam a única forma de sobrevivência. No fim, é a família de Dilsey que permanece, enquanto os Compson se desintegram.

Como Faulkner disse em seu discurso ao receber o Nobel: “O homem não apenas sobreviverá; ele prevalecerá”. E assim, é em Dilsey, não em Jason, que encontramos a esperança de um futuro, de uma humanidade capaz de compaixão e amor.

Ler Faulkner é aceitar o convite para adentrar uma literatura corajosa, forjada por homens imperfeitos, mas movidos por uma vontade inabalável de explorar os recônditos da alma humana e as complexidades do mundo em colapso ao seu redor. Seu romance, “O Som e a Fúria”, assim como o próprio Faulkner, são legados que transcendem o tempo, celebrando a grandeza da prosa e a profundidade das questões universais que carregam. É uma obra que merece ser continuamente lida, redescoberta e venerada, pois carrega em si o testemunho de uma força criativa que não só resiste, mas persiste.