Obra-prima do cinema europeu sobre a Segunda Guerra Mundial, indicada a 2 Oscars, está na Netflix e você talvez não tenha visto Divulgação / Sony Pictures Classics

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Florian Henckel von Donnersmarck, em seu filme “Nunca Deixe de Lembrar”, mergulha profundamente em um dos temas mais sombrios da história moderna, abordando a relação entre a arte e os regimes totalitários, como o nazismo. O diretor desafia o espectador a refletir sobre a perseguição às manifestações artísticas que ousavam confrontar a ordem imposta, enquanto traça paralelos com a vida do renomado pintor alemão Gerhard Richter. Em meio a esse pano de fundo histórico, o filme apresenta uma narrativa intensa que busca iluminar o processo pelo qual Adolf Hitler transformou sua frustração pessoal em uma cruzada contra a liberdade artística, em nome de uma ideologia distorcida.

A figura de Hitler emerge no filme não apenas como o ditador sanguinário que levou o mundo ao caos da Segunda Guerra Mundial, mas também como um pintor fracassado, cujo desprezo pela arte se manifestou em uma campanha implacável contra qualquer expressão que ameaçasse sua visão restrita de moralidade e ordem. Em 1937, o Partido Nazista organizou uma exposição em Munique que se tornaria símbolo dessa intolerância. A mostra, uma crítica virulenta a qualquer obra que não se adequasse aos princípios nazistas, atacava artistas como Picasso, Mondrian, Kandinsky e muitos outros, cujo trabalho representava o progresso e a diversidade que o regime rejeitava.

Essa campanha de ódio à arte moderna foi mais do que uma simples repressão cultural; ela refletia a ambição de Hitler de moldar o mundo à sua imagem, eliminando tudo o que não se alinhava com a sua ideologia. As perseguições a artistas, intelectuais e qualquer um que promovesse ideias progressistas não eram apenas ataques ao indivíduo, mas sim ao espírito da liberdade e da criatividade, que Hitler via como ameaças existenciais à sua visão distorcida de um império ariano. O impacto dessas medidas ressoou de forma devastadora, culminando na eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, e nos horrores que se seguiram nos seis anos de conflito.

Von Donnersmarck usa esse cenário histórico como ponto de partida, mas desloca os eventos para Dresden, onde a história de Kurt, interpretado inicialmente por Cai Cohrs, começa a se desenrolar. A cena em que o jovem Kurt visita uma exposição nazista, na companhia de sua tia Elisabeth, interpretada por Saskia Rosendahl, é particularmente reveladora. Embora não haja necessidade de palavras para expressar seu desgosto, a personagem de Rosendahl transmite ao sobrinho a sensação de que algo está terrivelmente errado naquela celebração distorcida da arte “oficial” do regime. A presença de um guia, vivido por Lars Eidinger, que ridiculariza figuras icônicas da arte moderna, só aumenta a sensação de absurdo que permeia o ambiente.

O filme explora as consequências pessoais e profissionais dessas imposições artísticas na vida de Kurt, cuja trajetória é inspirada diretamente em Gerhard Richter. Nas cenas em que o artista luta para encontrar seu lugar em um mundo dominado por ideologias extremistas, o diretor sugere que a arte verdadeira, assim como o espírito humano, é inquebrantável. Mesmo após o fim da guerra e a queda do nazismo, Kurt continua a enfrentar novos desafios, desta vez sob o regime comunista da Alemanha Oriental. Ali, a chamada estética do realismo socialista, promovida pelos comunistas, revela-se tão repressiva quanto as diretrizes artísticas impostas pelos nazistas.

A narrativa acompanha Kurt por décadas, mostrando o impacto duradouro dessas ideologias repressivas em sua vida e trabalho. Quando adulto, interpretado por Tom Schilling, ele decide estudar artes em Berlim, onde conhece e se apaixona por Ellie Seeband, interpretada por Paula Beer. No entanto, o pai de Ellie, o professor Carl Seeband, vivido por Sebastian Koch, guarda segredos perturbadores que ameaçam o relacionamento dos dois. Seeband, um ginecologista proeminente, personifica a arrogância e a crueldade de uma geração que, mesmo após a guerra, continua a exercer poder e controle sobre os outros.

A extensa narrativa de “Nunca Deixe de Lembrar” é, ao mesmo tempo, pessoal e política. O filme expõe os horrores dos regimes totalitários, mas também celebra a resiliência do espírito criativo. Von Donnersmarck constrói sua obra com uma paciência que lembra os grandes romances de Tolstói, como “Guerra e Paz” e “Anna Kariênina”. Cada conflito é abordado de forma cuidadosa e profunda, sem pressa, permitindo ao espectador compreender plenamente as motivações dos personagens e as complexidades de suas vidas em meio a um turbilhão histórico.

No centro de tudo isso está a crença inabalável na arte como um espaço de liberdade e expressão. O filme defende a ideia de que a arte não deve ser submetida a ideologias pragmáticas, nem deve servir como ferramenta para agendas políticas. A arte existe por si só, como uma expressão essencial da experiência humana, e é isso que a torna poderosa e necessária. Gerhard Richter, cuja vida inspirou o filme, é uma prova viva dessa filosofia. Sua obra, até hoje, continua a desafiar convenções e a explorar novos territórios, mostrando que, apesar das tentativas de repressão, a verdadeira arte sempre encontrará uma maneira de sobreviver e florescer.

Em última análise, “Nunca Deixe de Lembrar” é uma reflexão sobre o poder da memória, da arte e da resistência frente à opressão. Com uma direção magistral e atuações impactantes, o filme nos lembra que, mesmo em tempos sombrios, a beleza e a verdade têm um papel crucial a desempenhar na luta pela liberdade.


Filme: Nunca Deixe de Lembrar
Direção: Florian Henckel von Donnersmarck
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 9/10