Nos últimos dez anos, o cineasta chileno Sebastián Lelio tem se destacado ao explorar personagens femininas complexas que desafiam padrões sociais e culturais. Seus filmes são um reflexo das lutas constantes das mulheres contra um sistema que as exclui, revelando as suas tentativas de afirmar a própria identidade em meio a normas opressivas. O longa “Desobediência”, um drama clássico sobre as escolhas pessoais, situa-se dentro do contexto do judaísmo ortodoxo, mas poderia facilmente abordar qualquer tradição religiosa, em qualquer canto do mundo, onde a fé e as regras são impostas como verdades inquestionáveis que determinam os rumos das vidas.
Em “Gloria” (2013), Lelio mergulha no cotidiano monótono de uma mulher divorciada que, sem se dar conta, mantém um estilo de vida preso ao passado. Isso muda quando ela inicia um relacionamento que a conduz a grandes revelações e transformações. Já em “Uma Mulher Fantástica” (2017), o cineasta explora o luto sob a perspectiva de uma mulher trans, expondo as várias camadas de dor, preconceito e resistência que emergem após a perda de seu companheiro. Cinco anos depois, Lelio retorna ao cinema com “O Milagre”, reafirmando sua habilidade de contar histórias sobre dilemas morais e a complexidade da fé.
Baseado no livro de Emma Donoghue, o filme “O Milagre” (2022) carrega fortes ecos de “Desobediência”, especialmente na forma como explora os limites entre a fé e o livre-arbítrio. A protagonista, Lib Wright, uma enfermeira inglesa no século 19, viaja até uma aldeia irlandesa para investigar um estranho fenômeno: Anna O’Donnell, uma jovem que alega viver sem comer há meses, permanece saudável, desafiando todas as explicações científicas. Esse mistério ecoa a jornada de Ronit Krushka em “Desobediência”, quando retorna à sua comunidade após anos de afastamento, tentando se reconectar com um passado perdido e enfrentando a pressão de uma fé que deformou as suas relações.
Em um dos momentos mais marcantes de “Desobediência”, o rabino Rav Krushka, interpretado por Anton Lesser, prega sobre a diferença entre anjos, feras e seres humanos, ressaltando que apenas o homem possui o poder de escolher desobedecer a Deus. A complexidade dessa escolha é central ao enredo, quando o rabino sofre um ataque cardíaco durante o culto e morre. É a partir desse ponto que a trama se desenrola, focando na relação conturbada entre Ronit e seu passado.
Ronit, interpretada por Rachel Weisz, é uma fotógrafa que abandonou sua comunidade e seguiu para Nova York. Após a morte do pai, ela retorna a Londres para o funeral, sendo recebida com olhares de estranhamento por sua antiga comunidade, onde pouco mudou desde que partiu. A atuação sutil de Weisz transmite um misto de desconforto e nostalgia, enquanto Lelio utiliza o comportamento frio e distante da personagem para gradualmente revelar as razões de sua ruptura com o pai. O enredo ganha força com o reencontro entre Ronit e Esti, sua antiga amante, interpretada por Rachel McAdams, agora casada com Dovid Kuperman, interpretado por Alessandro Nivola, o filho adotivo do rabino.
O relacionamento entre Ronit e Esti é o verdadeiro núcleo emocional do filme. O retorno de Ronit reaviva antigos sentimentos entre as duas, e Esti, que sempre viveu uma vida regrada pela fé e pelas expectativas da comunidade, começa a questionar sua existência. A tensão entre as personagens é palpável, e Lelio conduz a narrativa com maestria, explorando as nuances de desejo, culpa e liberdade.
O triângulo formado por Ronit, Esti e Dovid oferece uma complexa teia de sentimentos e dilemas. À medida que o filme avança, o espectador é levado a questionar quem realmente é o vilão da história. Ronit é culpada por desestabilizar o casamento de Esti e Dovid? Ou Esti é responsável por manter uma vida dupla, incapaz de decidir entre a segurança de seu casamento e a paixão por Ronit? E Dovid, que parece inicialmente o mais sensato, também desperta a antipatia do público por sua passividade e falta de ação diante da crise que abala sua vida familiar.
Assim como em “O Milagre”, não há respostas fáceis em “Desobediência”. O filme se destaca por evitar soluções simplistas, mantendo o espectador imerso em um jogo de emoções e escolhas difíceis. O desfecho, embora sutilmente farsesco, reforça a habilidade de Lelio em explorar os dilemas humanos de forma crua e honesta, transformando “Desobediência” em uma de suas obras mais memoráveis. Ao final, Lelio nos deixa refletindo sobre os limites da fé, do desejo e da liberdade, sem oferecer respostas prontas, mas instigando o público a pensar sobre os próprios valores e escolhas.
Filme: Desobediência
Direção: Sebastián Lelio
Ano: 2017
Gêneros: Romance/Thriller
Nota: 9/10