Sentimentos profundos e paradoxais podem florescer mesmo em terrenos inférteis, como o universo sombrio do narcotráfico? “Festa no Covil” é um relato provocativo sobre o poder do tráfico de drogas, mas conduzido com um tom quase irônico pelo diretor Manolo Caro, que retrata a figura ambígua de um pai criminoso tentando construir para seu filho uma redoma luxuosa, afastada da violência que sustenta esse conforto aparente. Essa narrativa desafia a moralidade ao explorar a contradição entre a vida de excessos e a tentativa desesperada de proteger a inocência.
A produção é uma adaptação da obra homônima de Juan Pablo Villalobos, publicada em 2010, e traz ecos do realismo fantástico à la Gabriel García Márquez, sem, contudo, perder sua própria essência. A trama investiga as percepções distorcidas de um garoto excepcionalmente inteligente, mas cego para as nuances sombrias que cercam seu pai. A dúvida persiste: sua alienação é uma forma de cinismo, enquanto ele desfruta de uma existência extravagante, ou ele já foi tão seduzido pelo luxo que perdeu a capacidade de distinguir a verdade da ilusão? O roteiro, escrito por Nicolás Giacobone — consagrado após o sucesso de “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades” (2022) —, flutua entre esses extremos, abraçando o absurdo de forma deliberada e ampliando a sensação de ruptura na narrativa.
Viver em sociedade impõe um desafio constante: encontrar e revelar, de maneira sutil, aquilo que em nós é singular e, ao mesmo tempo, fazer com que os outros o reconheçam sem esforço aparente. Exige-se uma apresentação calculada, como se a imagem que projetamos fosse meramente casual e livre de intenções explícitas. A luta silenciosa do ser humano é travada não apenas contra impulsos internos, mas também contra o teatro social que nos rodeia. Para sobreviver a essa tensão, a arte surge como uma espécie de refúgio, evitando que a medicina se torne a única válvula de escape. Assim, em meio ao caos, a busca por aperfeiçoamento pessoal emerge como uma tentativa de transformar a permanência no mundo em uma experiência menos penosa e, quem sabe, mais significativa.
Poucos personagens são tão hábeis em dissimular quanto Yolcaut, o gângster interpretado por Manuel García-Rulfo. À primeira vista, ele não parece capaz de nutrir afeto genuíno, mas sua devoção ao filho, Tochtli, é inegável. O garoto vive cercado por livros e pela influência nefasta dos adultos à sua volta, mas é tratado por Yolcaut como o centro de seu mundo. A narrativa ganha momentos de ternura inesperada, especialmente na introdução. Uma das cenas mais tocantes ocorre quando Tochtli, de cabeça completamente raspada, precisa escolher um chapéu para se sentar à mesa — uma escolha simples, mas carregada de simbolismo e emoção. A natureza dessa aparente enfermidade nunca é esclarecida, e o mistério que envolve os hipopótamos, um presente exótico oferecido por Yolcaut, mantém a atenção do público até o fim. Apesar de momentos que parecem romantizar o estilo de vida do protagonista, essa tensão se revela como um dos maiores desconfortos que “Festa no Covil” provoca.
Filme: Festa no Covil
Direção: Manolo Caro
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10